quarta-feira, 28 de junho de 2017

DEPOIMENTO SOBRE JOSÉ GUIMARÃES CASTELLO BRANCO

Fonte: Google

DEPOIMENTO SOBRE JOSÉ GUIMARÃES CASTELLO BRANCO
                                     
Alcenor Candeira Filho

     Conheci o primo José Castello em 1954, quando ele, contando dois anos de idade, visitou Parnaíba em companhia dos pais e irmã, todos hóspedes de meus avós paternos e de minha mãe.
     Conservo até hoje fotografias batidas nessa viagem. Mostrei-lhas quando ele visitou novamente Parnaíba em 2008, já na condição de jornalista e escritor consagrado nacionalmente,  com o propósito de colher informações e vivenciar emoções a partir do passado de  seu pai José Ribamar Castello Branco, que aqui morou na mocidade e que é personagem central do livro que estava escrevendo – RIBAMAR, com que viria a ganhar o prêmio Jabuti de 2011 na categoria de romance.
     RIBAMAR é uma fusão de ficção e de memórias biográficas que focaliza o conturbado relacionamento entre pai e  filho.
     Uma das fotos mostradas a José Castelo e na qual aparecem o futuro escritor, seu pai, sua mãe e sua irmã é tão reveladora que foi evidenciada no livro. Examinando atentamente o velho retrato, o escritor descobre que já existia ali o conflito entre pai e filho:

            “A fotografia está fosca, as cores fraquejam, as imagens
            se dissolvem. Ainda assim,  ela lateja em minhas mãos. Emite
            outro tipo de luz: aquela em que o passado resiste, como  um destino.
            Aos dois anos de idade, magro e desconfiado, já sou o
            estranho que você conheceu e de quem se afastou. Está tudo
            ali,  para que  mais? Para que escrever um livro?”(p. 163/164).

     Essa penosa busca de reconciliação por meio de um mergulho no passado do falecido pai é que levou José Castello a voltar a Parnaíba, trazendo o “projeto insano” de recuperar o passado do pai, “uma loucura, uma estupidez, um livro” (p. 47), não um livro “sobre” o pai, mas um livro “através” do pai (p. 136).
     A falta de sintonia entre pai e filho, principal fio condutor da narrativa, já existia entre pai e avô do autor, Lívio Ferreira Castelo Branco, apontado no romance como intelectual  medíocre não só pelo neto escritor mas também pelo próprio filho Ribamar, que declara ao entregar a José Castello um velho caderno com poemas publicados na imprensa de Parnaíba nos anos 20: “São bobagens de meu pai. Por mim, vão para o lixo”(p.119).
     Quer dizer, o autor se vê de repente diante de uma herança maldita, “diante de uma duplicação. Mais uma.  Um segundo abismo, agora entre você e seu pai, repete o desfiladeiro que nos separa. Um destino grafado no sangue, uma herança genética – algo de que não conseguimos escapar” (p. 119).
     Desconhecendo o fato acima, aqui em Parnaíba mostrei a José Castello uns poemas de seu avô, e ele de forma direta, curta e grossa como se diz no Piauí: “Péssimo poeta, já sabia disso desde criança, quando meu pai me entregou velhos papéis com poemas do vovô Lívio, com a recomendação de que os jogasse no lixo”.
     O duro e azedo julgamento do neto sobre os escritos do avô paterno se manifesta ostensivamente em várias páginas do livro:

            “Não me interesso pelos sonetos de meu avô, pomposos,
            com rimas odiosas, estúpidas exaltações de civismo. Um deles se
            chama ‘Progressos’, mas a linguagem do passado destrói tudo”
                                    (p.120).

            “Dois pseudônimos: João do Mato e Sabino Ferreira.
            Dois mantos que meu avô (...) usou para se esconder. Suas
            crônicas na imprensa, assinadas com os nomes falsos eram
            medíocres” (p. 267).

     Essa história de pseudônimos usados pelo avô do romancista não é ficção, como prova o ALMANAQUE DA PARNAÍBA de 1929, que registra o falecimento de Lívio em 05.02.1929 durante um baile de carnaval no Cassino 24 de Janeiro e traça-lhe o perfil moral, político e intelectual, ressaltando ter sido ele “como literato, um poeta espontâneo  e gracioso, que com os apelativos de João do Mato e Sabino Ferreira deixou crônicas que marcaram época no nosso meio intelectual”.
     Confesso que as opiniões críticas apresentadas no romance RIBAMAR, embora sinceras e verdadeiras, me fizeram ter pena de meu bisavô, que sempre considerei um poeta tolerável para leitores de boa vontade e que indiquei para patrono da cadeira nº 28 da Academia Parnaibana de Letras.
     Algumas pessoas da família Castelo Branco não gostaram do premiado romance, achando-o amargo e ofensivo ao pai do autor e à família. Atribuo esse julgamento, com o qual não concordo por entender que das 278 páginas do livro o personagem central sai é engrandecido,  a uma impressão apressada e superficial de leitura.
     Também foi vítima desse mal entendido familiar o publicitário e escritor Renato Pires Castelo Branco por causa de seu romance TEODORO BICANCA, em que se confundiu um tipo sociológico genérico, o Coronel, fruto de um quadro histórico, com a pessoa de seu tio – coronel Belarmino Pires.
     No Salão do Livro do Piauí – SALIPI, em 2011 ou 2012, fui a Teresina para ouvir a palestra de José Castello sobre o romance RIBAMAR. Após a palestra e com a palavra dirigi-me ao palestrante não com uma pergunta como seria natural, mas com um depoimento que talvez naquele momento só eu pudesse dar entre os presentes. Reportei-me ao fato de que alguns membros da família Castelo Branco detestaram o romance. E como parente e sobretudo por ter conhecido pai e filho, concluí: “Acho que RIBAMAR é o tipo de romance de que eu como pai e personagem muito me orgulharia”.
     No livro INVENTÁRIO DAS SOMBRAS, José Castello conta que no Rio de Janeiro, novembro de 1974, vinte e três anos de idade, enviou um conto para Clarice Lispector, com endereço e telefone juntos na esperança de que ela viesse a retornar. Passado um bom tempo de silêncio, eis que “o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: ‘Clarrrice Lispectorrr’, diz. Ela entra logo no assunto: ‘Estou ligando para falar de  teu conto’, continua )...) ‘Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso (...). E com medo ninguém consegue escrever’” (p. 19). Que grande conselho!
     É provável que RIBAMAR seja o tipo de livro de ficção que Clarice Lispector gostaria que José Castello escrevesse. Nele ou através dele percebe-se que  o autor realizou uma grande obra porque a escreveu após libertar-se das amarras do medo a que se refere a autora de LAÇOS DE FAMÍLIA.
     A exemplo de Mário de Andrade, que, à falta de melhor classificação para a extraordinária obra MACUNAÍMA, chamou-a de rapsódia. José Castello classifica seu livro como romance, “porque não sei o que ele é”, conforme declarou na dedicatória do exemplar a mim destinado. Transcrevo toda a dedicatória por ser bastante esclarecedora do que pensa o escritor sobre a própria obra em que trabalhou exaustivamente durante quatro anos:

           Querido Alcenor,
           Curitiba, 15-set.-10
           Vai aqui o livro que consegui escrever. Não procure  a
           verdade nele, porque ela só aparece de forma esmaecida.
           Não é uma biografia, não é um ensaio, não é uma
           confissão, não é um livro de viagens.
           Eu o chamo de ‘romance’ porque não sei o que ele é.
           Você aparece escondido na figura do tio Antônio.
           Minha gratidão.
                José Castello”

     RIBAMAR é uma obra fortemente influenciada pelo escritor tcheco Franz Kafka, como se vê nas páginas iniciais: “Meu mal tem uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não que eu o inveje ou deseje ser como ele. Também não o odeio e, com algum esforço, reconheço sua grandeza. Meu problema é que não consigo parar de pensar em Kafka” )p.11).
     O livro de Kafka tão presente no romance não é o mais  famoso dos que escreveu – METAMORFOSE – mas talvez o mais profundo de todos – CARTA AO PAI – que Ribamar no Dia dos Pais do ano de 1973 recebeu com esta dedicatória: “Para o  papai com um beijo e o amor do filho José” (p.21).
     Assim como o pai do genial escritor tcheco jamais leu a  CARTA AO PAI, “livro que,  refém do medo, Franz preferiu entregar à mãe, Julie, e não ao pai” (p. 22/23), também o exemplar dessa carta adquirida por acaso numa papelaria de Copacabana e dado pelo filho ao pai no Dia dos Pais nunca foi lida, tendo sido encontrada muito tempo depois num sebo do Rio de Janeiro.
     E como as cartas que não chegam a seu destino são as “que se perpetuam” (p. 276), na hora de deixar Parnaíba e de fechar as malas, pagar a conta do hotel e voltar para casa, o escritor fecha o grande romance:

         “Antes de pegar a estrada, preciso passar no correio.
         Tenho uma carta a despachar. Esta carta, a você, meu pai.
         A atendente me olha perplexa: ‘Falta o endereço’.
         Eu respondo: ‘Ponha aí um destino qualquer’” (p. 278).

     José Castello, carioca, radicado em Curitiba, é crítico literário, biógrafo, jornalista e romancista. Como cronista já trabalhou em diversos jornais e revistas: O Globo, O Estado de São Paulo, Isto É, Veja , etc..
     Autor de vários livros, destacando-se RIBAMAR, VINÍCIUS DE MORAES: O POETA DA PAIXÃO: UMA BIOGRAFIA, INVENTÁRIO DAS SOMBRAS, DENTRO DE MIM NUNGUÉM ENTRA, NA COBERTURA DE RUBEM BRAGA, A LITERATURA NA POLTRONA.   

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