sábado, 30 de abril de 2016

O lírico e telúrico em Elmar Carvalho

Capa da segunda edição

O lírico e telúrico em Elmar Carvalho (*)

Reginaldo Miranda
Presidente da Comissão Editorial da APL.

O fazer poético é trabalhar arduamente com as palavras em busca da sintetização de ideias, da sonoridade da frase, da busca do belo, em linguagem mais metaforizada, ritmada e sujeita a maiores peripécias estruturais que a linguagem em prosa. Ser poeta é trabalhar intensamente o processo artístico, o estilo, enfim, a busca da expressão perfeita.

Poeta tem de ter dom e trabalhar intensamente a forma e o estilo. Elaborar o texto com sonoridade, porque fazer poesia é cantar, sempre cantar, podendo ser esse canto de amor, alegria, tristeza, lamúria, dor, revolta, guerra, mas é preciso ser sonoro, sensível, penetrar a alma.Sem isso, a meu sentir não é poesia, embora possa ser um bom texto de qualquer outro gênero, menos poético. Sei que pode haver quem pense de forma contrária, e respeito.

No caso deElmar Carvalho, temos uma poesia lírica, elaborada com rara sensibilidade, sem esquecer o drama social. O poeta não está enclausurado num mundo de sonhos, em castelos de areia, mas consciente de seu papel na sociedade, em sintonia com o povo, de que é exemplo o poema Sou poeta: “sou poeta/E estou de mal com a vida/ que nos acena/ com miragens/ que jamais irá cumprir./Sou poeta Alcides Pinto,/nunca neguei, sou poeta./ Mas sou puto com a vida,/megera encarquilhada/ que nos acorda dos sonhos/ que sonhamos acordados/ pelo prazer de ser madrasta”. E noutro trecho do mesmo poema: “e sei que o povo/ passa fome/ Sei que/algum dia o/ ter’ar’pão/ virá tecido no (te)ar/ pelo arpão do povo/ e pão haverá/ Sei que/ alguma coisa está errada/ porque o povo era pra ser/ tudo/ e agora não é nada”.

Então, não se diga que a poesia de Elmar Carvalho não tem viés social. Tem sim. O poeta manifesta revolta, engajamento e consciência de que algo está errado e tem de mudar. Ele se reconhece poeta, é consciente de seu papel na sociedade, de que sua missão não é cantar os “políticos que tanto mentem pro povo, que tanto enganam o povo”, mas cantar e denunciar o drama da vida, das putas, dos assassinos, dos botequins, “dos deserdados da sorte, dos enteados da vida”.Nessa toada segue toda a poesia do Cancioneiro do Fogo, com indisfarçável protesto social. Aliás, essa é uma tendência da poesia moderna, sempre preocupada com o drama social.

Contudo, a poesia de Elmar Carvalho é essencialmente lírica, envolvendo a emoção, os sentimentos, o seu estado de alma, o que vem sendo acentuado por diversos críticos, entre os quais M. Paulo Nunes, Cunha e Silva Filho, Teresinha Queiroz, Cléa Rezende, Alcenor Candeira Filho e tantos outros que têm se debruçado sobre sua obra.

Elmar Carvalho canta a sua terra, exalta as suas singularidades, as suas belezas, também seus problemas sociais, guiando o leitor pelas veredas do Piauí. O Cancioneiro da Terra e da Água é todo um hino de louvor à natureza e ao rincão natal. De forma lírica e telúrica canta em Marítima as ondas e eflúvios do mar; Flagrantes de Teresina, onde à meia-noite, silente e fria nenhuma estrela luzia, apenas os bêbados passeiam equilibrados sobre a corda bamba dos pés, entre velhas meretrizes sem freguesia; Elegia a Campo Maior, onde as águas mortas do açude tudo viam e tudo refletiam; Postais de Parnaíba, com seu cais da beira-rio, onde lavadeiras sem roupas lavam as roupas dos ricos; também, realçam as subjetividades de Luzilândia, Barras, Amarante, José de Freitas(antiga Livramento), Sete Cidades, Lagoa do Portinho, fazendas e esse consagrado poema que é Noturno de Oeiras, em que homenageia a velha Capital.

Depois de ler esta obra perceberá o leitor que o Piauí é muito mais que um mero lugar no mapa do Brasil. Tem uma gente alegre, laboriosa, que sonha, realiza, sofre, luta e sabe vencer.

Outra vertente da poesia de nosso vate é o poema épico pós-moderno, de que é exemploDalilíada, enfocando a vida e obra de Salvador Dalí; assim como A Zona Planetária, inspirada no meretrício de Campo Maior, onde o poeta mostra toda a pujança de seu talento.


Elmar Carvalho é poeta na acepção da palavra, lírico, essencialmente lírico e telúrico; ao mesmo tempo épico pós-moderno, sem esquecer de invocar o povo simples, os deserdados da sorte, enfim, odrama social. Denuncia a dor, a solidão, o sofrimento. Também, canta a sua terra e, assim cantando seus males espanta. Por isso mesmo a sua obra é universal porque canta a sua aldeia, como diria Leon Tolstoi.  

(*) O vertente texto será a orelha da terceira edição de Rosa dos Ventos Gerais, pela Coleção Centenário da Academia Piauiense de Letras (já no prelo).

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Histórias de Évora - Capítulo III



HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

            Capítulo III

O APELO DO SEXO

Elmar Carvalho

Desde sempre e até muitos anos depois da adolescência de Marcos a maioria esmagadora das mulheres de Évora (e de outras cidades, sobretudo nordestinas) preservava a virgindade até o casamento. Algumas, quando confiavam no namorado e sob promessa de casório, abriam exceção. Quase sempre a promessa era cumprida, sob pena de escândalo e inimizade entre as famílias envolvidas. Como dizia o cantor Reginaldo Rossi, num de seus grandes sucessos da época, a pílula já existia, mas ninguém falava, e muito menos era usada pelas moças solteiras de então.

Desse modo, os jovens se iniciavam no sexo com as raparigas, como eram designadas as prostitutas. Algumas tinham foro de professoras, e várias gerações de “alunos” passaram pelo seu tirocínio pedagógico. Cada cidade tinha os seus bordéis, com seus nomes pitorescos e muitas vezes jocosos. Havia os de luxo, os caros, os populares e o chamado baixo meretrício; estes eram infestados por mulheres mais feias e mais velhas. Algumas das meretrizes eram “importadas” de outros estados, entre os quais Pernambuco e Bahia. Era raro, mas apareciam as estrangeiras, de preferência louras e de fala enrolada.

Os jovens, quase sempre sem emprego e sem dinheiro, passavam pelos cabarés, para espiar o movimento e os casais no salão, geralmente cheio de espelhos e envolto na penumbra de luzes negras. Às vezes, tinham recurso para tomar apenas duas ou três cervejas, enquanto ouviam os sucessos musicais do momento, sobretudo músicas românticas, recheadas de muita paixão, adultério, vingança e amores infelizes.

Das velhas vitrolas evolavam as vozes de Waldick Soriano, Roberto Muller, Evaldo Braga, José Ribeiro, Carmem Silva e outros astros da chamada música brega. Vez por outra um felizardo, metido a galã e conquistador, conseguia que alguma rapariga fosse com ele gratuitamente. Outros, mais sortudos ainda, tornavam-se gigolôs de madame (como era chamada a dona do brega) ou de alguma rameira de alta rotatividade.

Alguns mais afoitos, na ânsia incontida de apaziguar o sexo, iam para o quarto com alguma das mulheres, e somente após o coito declaravam não ter dinheiro. Era o chamado “passar o seixo”. Quase sempre as raparigas se revoltavam com o logro; faziam uso de palavrões e xingamentos, e algumas vezes lesionavam o caloteiro com giletes, navalhas ou facas, ou com unhadas e dentadas. Algumas ostentavam as cicatrizes e hematomas de eventuais revides.

Marcos já fazia planos de fazer sua estreia, principalmente desde o seu alumbramento, ao ver Neuza desnuda. Via com frequência as revistas proibidas, que seus colegas e amigos lhe exibiam. Conseguia algumas por empréstimo, e ficava com elas durante alguns dias, até que o proprietário lhe cobrava a devolução. Um amigo seu, filho de próspero comerciante, tinha o requinte de possuir um luxuoso almanaque pornográfico, em papel couchê e com fotos em policromia, recurso gráfico raro na época. Mas não o emprestava, e só deixava que outra pessoa o folheasse por poucos minutos, sob seu olhar atento e cuidadoso.

Seguindo o exemplo de seus colegas, gostava de observar as coxas das colegas do ginásio. Algumas, mais atrevidas, encurtavam as saias da farda, fora da vigilância materna. Outras, por displicência, malícia ou generosidade davam brecha, em que se podia flagrar pequena nesga triangular de calcinha, às vezes retesas, esticadas. Alguns seios mais volumosos pareciam querer voar da clausura do sutiã pelo decote da blusa. Mamilos mais aguçados espetavam os tecidos mais finos. Nada escapava aos olhares famintos e curiosos dos jovens que desabrochavam para o apelo do sexo, numa época em que ainda havia certo recato e o mistério, natural ou dissimulado, fazia parte da sedução e do fascínio.

Marcos Azevedo atingiu o ápice de notoriedade local quando escreveu a épica Ode à punheta, em que parodiava Vou-me embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira. Várias cópias mimeografadas do poema circularam na cidade, passadas de mão em mão. Alcançou o auge de sua glória quando o famoso boêmio e declamador Cazuza o recitou embriagado, em magnífica interpretação, ilustrada por esclarecedora mímica, no enorme “saloon” do Quartel General, ou simplesmente QG, um dos mais luxuosos lupanares da velha urbe, com sua voz grave, possante, levemente metálica e estentórica. A estrofe inicial retumbou no saguão lotado de fregueses assíduos e convidados especiais:

Vou-me embora pra Solitária,
Em Évora não sou Dom João.
Em Solitária sou rei, e terei
As mulheres que sempre desejei
No côncavo de minha mão.

Certo dia estava ele na sala de sua casa, enquanto sua mãe fazia alguns afazeres, quando chegou Suzana, uma garota da vizinhança, doente mental. Ela era mais ou menos de sua idade. Não era considerada bonita, mas tinha seios empinados e encantadores. Por mistério insondável tinha forte inclinação para o sexo, embora, nos demais aspectos, fosse ingênua e inocente como uma criança, já que a sua idade mental era bem menor que a real. Corriam rumores de que alguns meninos já tinham transado com ela e feito outras saliências.

No entanto, ela gostava de dar esmolas, rezar, frequentar a igreja e cantar músicas religiosas, com sua angelical voz e ar de beatitude. Insistia para que seus pais fizessem caridade; com eles visitava o abrigo dos velhinhos. Viria a morrer pouco tempo depois, aos dezessete anos, vítima de fulminante aneurisma. Ganhou fama de alma milagrosa e seu túmulo se tornou o mais visitado do velho cemitério de Évora.

As duas irmãs e os dois irmãos de Marcos haviam saído para o colégio, de modo que a garota puxou conversa com dona Rita. Logo após, o rapaz resolveu ir para o seu dormitório a fim de ler uma antologia de poemas brasileiros, que a Fename – MEC havia publicado. Na verdade ele já estava relendo alguns poemas dessa seleta, que conservaria para sempre.

Não demorou muito Suzana, aproveitando-se do fato de que dona Rita fora orientar Neuza sobre o preparo do almoço, entrou no quarto em que Marcos se encontrava. Entabulou rápida conversa, apenas para lhe atrair a atenção. Começou a se embalar. Em seguida, no sentido da largura da rede (e não do comprimento), entreabriu as grossas coxas, puxou o vestido para o busto, e curvou a cabeça e os seios para baixo, de modo a ressaltar o monte de Vênus, que já era naturalmente acentuado, vendo-se logo abaixo a concha de valvas bem cerradas.

Tirara a calcinha, e uma quase imperceptível e delicada penugem o recobria. Marcos, como se dizia na época, foi no outro mundo e voltou, mas tudo fez para se controlar. Como a moça notou que ele se mantinha distante, retraído, parecendo recear alguma coisa, com os dedos de ambas as mãos afastou os grandes lábios, e disse, com a voz embargada de desejo, sussurrante, vem, coloca teu pinto bem aqui, neste buraquinho.

Nesse curto instante, coisas demais passaram pela cabeça alucinada de Marcos. Recordou que Suzana era irmã de um amigo seu, grande craque de seu time. Lembrou os conselhos de seus pais, para que nunca agisse de forma precipitada e jamais fizesse coisas de que pudesse vir a se arrepender, que viessem a lhe pesar na consciência.

Vieram-lhe à mente certas lições do catecismo sobre pecado. Parecia ouvir as palavras severas do padre Alberto, ameaçando os pecadores com o infernal fogo eterno; castigo bem mais severo que a ofensa. Lúcifer, com as suas negras asas de morcego, com as suas garras longas e aduncas, parecia ter saído das ilustrações do livro de edificação religiosa e estar ali bem perto, a revoar. Pensou nas irmãs. Achou que se atendesse ao chamado de Suzana estaria se aproveitando de sua inocência de doente. Ela, no entanto, o instigou novamente. Vem, coloca teu negócio bem aqui... Tu vai ver como é bom. E acrescentou, talvez para forçá-lo a sair de sua indecisão: Parece que tu não é homem...

Chateado, constrangido e envergonhado, ele então lhe exibiu o membro, ereto, tinindo de teso, e pulsante. Você está vendo como estou, mas não quero. A qualquer momento a mamãe pode entrar aqui. A moça ainda disse, deixa de ser besta, a gente faz ligeiro.

Felizmente, nesse momento dramático e de alta tentação, sua mãe gritou, chamando-o, talvez temendo o que pudesse acontecer:
– Ei! Marcos, vem cá, vem ajudar a mudar este móvel para outro local.


O jovem, ainda afogueado, sentiu como se houvesse saltado uma fogueira, talvez a fogueira eterna do padre Alberto, em suas catilinárias sacras incandescentes, em que o perdão parecia não existir, em que a punição era infinitamente maior do que o pecado.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Belas tardes de domingo

Foto meramente ilustrativa

Belas tardes de domingo

José Pedro Araújo
Contista, cronista e romancista

Existem coisas que marcam a fogo a nossa memória para sempre e, invariavelmente, tornam do canto escuro em que ficaram guardadas eternamente, despidas da parte ruim, é claro, para nos inundar de saudades. A maioria delas é composta por acontecimentos simples que, quando damos conta delas para outrem, ficam sem entender onde reside a graça daquilo que dizemos. Para nós, entretanto, elas são tão importantes quanto pequenas joias de valor incalculável, pois nos levam para o passado mais alegre da nossa pretérita existência. Essas lembranças, muitas vezes, são trazidas até nós sempre que alguma coisa nos acontece, como quando ouvimos uma velha música de que gostamos, e ela sempre vem acompanhada pela lembrança de um lugar, de uma pessoa, ou mesmo de um fato acontecido quando a ouvíamos.

O tempo vai passando, a idade vai chegando sorrateira com suas dores e suas cores cinzentas, mas traz costumeiramente também lembranças muito queridas para nós. Uma dessas lembranças simples e duradouras nos dá conta do que acontecia nas tardes dominicais do meu Curador.

Nos primeiros anos dos sessenta, havia pouca coisa para se fazer numa cidade tão pequena e desprovida de opções de lazer como a nossa. Para os aficionados pelo futebol, sempre restava o velho radio de pilhas e suas ondas médias, que traziam até eles o som das transmissões futebolísticas, por exemplo. Sentados confortavelmente em cadeiras espreguiçadeiras, esses torcedores sertanejos ouviam com atenção os ataques de histeria dos locutores quando algum atacante do seu time favorito se aproximava do gol adversário. Às vezes, não havia o jogador ainda ultrapassado a linha que divide o gramado, mas eles já carregavam na emoção e deixavam o sofrido torcedor com a impressão de que a bola já estava quase dentro do gol adversário.

Para a garotada, porém, restava pouco o que fazer. Assim, tinha que se agarrar em alguma coisa para ocupar o tempo que se escoava vagarosamente rumo ao anoitecer. Tocavam a inventar brincadeiras e a buscar emoção nas coisas à disposição e tão corriqueiras. Sem alumbramento, entretanto.

Uma dessas possibilidades de dar um pouco de alegria às tardes de domingo, aconteceu quando um empresário da cidade, Zé da Cruz, adquiriu um caminhão novinho em folha, para transportar mercadorias e produtos relativos à sua atividade empresarial. Corria ai, como já falei, o inicio dos anos sessenta, e existiam poucos carros na cidade ainda inexpressiva. De modo que a simples aquisição de um veiculo por algum dos moradores da cidade já era assunto para ser tratado nos pontos de maior ajuntamento de pessoas, como a praça da matriz, o mercado central ou mesmo as igrejas.

Como ia dizendo, o caminhão do Zé da Cruz era uma das novidades mais alvissareiras da localidade e todo mundo queria conhecer o tal veículo motorizado e, se possível, desfrutar do seu conforto, dando uma voltinha nele. Nem precisava ser na cabine. Na carroceria já estava de bom tamanho.  Não posso negar, fiquei encantado com aquele Chevrolet branco e de para-lamas pintados na cor azul (se não me falha a memória).  Logo que fiquei sabendo da novidade, convidei meu pai, grande amigo do empresário, a lhe fazer uma visita. Era uma tarde linda de domingo e o sol brilhava forte, cobrindo de amarelo toda a região presidutrense. Com muita luta, meu pai acedeu ao meu convite e dali a pouco partimos em direção à praça da matriz. A casa a qual nos destinávamos ficava em uma das esquinas da praça principal da cidade. E, como sempre acontecia, fomos recebidos com o maior carinho e afeto pelo casal de amigos. Como não poderia deixar de ser, a conversa logo enveredou para a chegada do novo transporte, recentemente adquirido.

Conversa vai, muda para as novidades da politica, depois volta ao assunto que nos levara até ali. E eu ali, quieto e esperançoso. Esperançoso que o anfitrião nos convidasse para conhecer a novidade. Mas, como em muitas coisas da minha vida, aconteceu melhor. Em dado momento, Zé da Cruz perguntou ao amigo (depois sócio em uma loja de tecidos), por que não davam uma voltinha no Chevrolet. Ai, não me aguentei e já levantando da cadeira clamei em alto e bom som: claro que meu pai aceita! Posso ir junto?

Bom. O que aconteceu depois, não recordo muito bem. Nem mesmo quem dirigiu o caminhão, pois o seu proprietário não possuía habilitação para guia-lo. O que eu sei, com certeza, foi que logo estávamos passeando pelas ruas empoeiradas da cidade. Meu pai ia na cabine (boleia) junto com o proprietário, e eu encarapitado na carroceria, seguro ao gigante. E daí a pouco, a carroceria estava repleta de gente. Adultos, crianças, mulheres e homens, somavam um só e coeso grupo: a trupe dos cidadãos mais felizes da cidade.

Ah! Quem nunca experimentou aquele vento frontal no rosto, fresco e a despentear-lhe os cabelos, não faz ideia do prazer que sentíamos naquele instante. A alegria era visível no rosto de cada um dos sortudos que ali estava. O riso saia fácil e as gargalhadas acompanhavam o solavanco do caminhão pelas ruas esburacadas e poeirentas. E quando avistávamos algum conhecido, aqueles felizes passageiros acenavam inebriados e gritavam para chamar-lhe a atenção. Queriam ser vistos naquela comitiva da felicidade. E, de vez em quando, alguém corria atrás do carro e subia na carroceria para aproveitar o convescote dominical. Dai a pouco, a carroceria não cabia mais ninguém.

Se bem me lembro, fomos até muito depois do bairro Campo Dantas, depois voltamos pela Magalhães de Almeida e seguimos até o Varjão. Um passeio e tanto. Uma felicidade sem par. Quando o caminhão parou na frente da casa do proprietário, a noite já cobria a cidade com o seu manto escuro, posto não termos luz elétrica naquele tempo, apesar de já termos sentido o prazer dessa modernidade em épocas passadas. Os postes de pau d’arco com toda a fiação, ainda se encontravam enfiados no chão, para atestar isso, mas o velho motor elétrico se achava fora de combate há muitos anos. Por esta razão, ao apearmos do Chevrolet a escuridão já tomava conta da cidade.

Quase não me continha na minha alegria ao volta para a nossa casa. Meu pai, como sempre fazia, estimulava o eu prazer ao concordar que aquela havia sido uma tarde de domingo sem igual. Durante muitos outros domingos, sempre à tarde, ainda voltamos a nos deleitar com aquele passeio. Entretanto, quando o caminhão se achava em viagem, ou sem gasolina, pois ainda não existia um posto do combustível na cidade, a decepção era total. Estava acostumado demais com aquele sacrossanto passeio dominical. Não me recordo também quando teve isso fim, e nem por que terminaram com o nosso lazer especial de domingo. Minha memória não guardou essa informação.

Sei apenas que durou o tempo suficiente para que não me esqueça jamais de como era doce e agradável aquelas tardes ensolaradas e o especialíssimo passeio sobre a carroceria do caminhão Chevrolet. Hoje em dia, mesmo possuindo nosso automóvel até certo ponto confortável, não sinto o mesmo gosto, a mesma sensação ao passear pelas ruas. Aquele vento fresco batendo no rosto, brincando com os meus cabelos, é uma sensação que guardarei na memória para sempre. Belas tardes de domingo!


Fonte: blog Folhas Avulsas

domingo, 24 de abril de 2016

Seleta Piauiense - Oliveira Neto


Silhueta Pagã

Oliveira Neto (1907 – 1983)

Não sei donde surgiu.  Mas de repente
se encontrava comigo conversando.
Os olhos nos meus olhos, frente a frente,
eram dois pintassilgos namorando.

De alto porte, bonita, inteligente,
a estirpe de fidalgos demonstrando,
não podia ocultar o ser ardente
na volúpia do amor se acrisolando.

Silhueta pagã, onde passou
a natureza em si paralisou
e o povo abriu honrosa passarela.

Silenciaram todos os ruídos.
E sinto que ficou nos meus ouvidos
a sonora canção dos lábios dela. 

sábado, 23 de abril de 2016

CADA QUAL COM SUA NATUREZA


CADA QUAL COM SUA NATUREZA

 Jacob Fortes

A fábula dizia mais ou menos assim: certo professor oriental costumava ministrar aulas aos seus alunos durante caminhadas matinais pelos campos; respiravam oxigênio puro e se exercitavam. Certa feita percebeu o professor que um escorpião descia o curso da água de um regato. Mais que prontamente o professor o retirou da água, mas ao fazê-lo o aracnídeo cravou-lhe à mão o aguçado esporão que carrega ao rabo recurvo. Sobressaltado, o professor, subitamente, deixou o artrópode cair na correnteza outra vez, porém não desertou do propósito de salvá-lo, o que o fez logo adiante. Perplexos, os alunos quiseram saber o porquê da insistência de salvar um espécime tão mal agradecido, ao que lhes respondeu o professor: “esporar é apenas da natureza do escorpião”.

O então Senador José Roberto Arruda ao traquinar no painel de votação do Senado negou inicialmente a autoria da traquinice, mas, ante as provas incontornáveis admitiu haver adulterado o painel de votação. À tribuna, cheio de comoção e humildado, pediu perdão aos seus pares, que o relevaram.  Posteriormente, antes de lançar sua candidatura ao cargo eletivo de Governador do Distrito Federal, Arruda, igualmente humildado e transbordando em comoção, pediu ao povo de Brasília um voto de confiança. Resultado: elegeu-se a governador do Distrito Federal. Durante o mandato de governador, (posto que não se houvesse curado do esquisito hábito de traquinar), fora flagrado recebendo, à sorrelfa, alguns fardos de dinheiro, circunstância que o levou ao cárcere e a perda do mandato. Profundo conhecedor da alma humana, (sabe como ninguém amolgar os corações dos eleitores), Arruda, por certo, apresentará nas próximas eleições um terceiro pedido de perdão; a julgar pelas estatísticas há de sagrar-se vitorioso.

Diferentemente, a Presidente Dilma cometeu muitos erros, mas jamais pediu desculpas, sequer os admitiu.  Cada qual com sua natureza, “cada qual acredita salvar-se na lei que segue”.     

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Dois novos comentários sobre Histórias de Évora


Dois novos comentários sobre Histórias de Évora

Diante de uma nova análise do professor Cunha e Silva Filho sobre os dois capítulos iniciais de meu programado romance Histórias de Évora, julguei oportuno fazer alguns esclarecimentos, que foram objeto de um percuciente comentário crítico do festejado cronista e crítico literário.

Seguem os dois referidos textos, para que o leitor os analise e coteje:

Caro Cunha,

Aos poucos, assim espero, irei desvelando minhas poucas personagens, mas sem ter a pretensão e o desejo de revelar "tudo", até porque, mesmo na vida real, nunca conhecemos totalmente uma pessoa, mesmo as que convivem conosco há muitos anos.

Por outro lado, junto com as histórias das personagens principais, irei contando outras histórias da cidade de Évora e de outras pessoas, como está a indicar o próprio título do livro.

Cabe ao leitor, com a sua inteligência, experiência de vida e imaginação, interpretar as entrelinhas e os silêncios, e complementar as lacunas.

Muitas vezes, a meu ver, uma obra de arte deve mais sugerir, do que dizer de forma explícita.

Portanto, se faz necessária sempre a cumplicidade do leitor.

Espero também fazer uso da concisão, para não cansar e maçar o apressado leitor dos dias internéticos de hoje.

Abraço,

Elmar

...................................................

Caro Elmar:

 Sua mensagem à minha tem um valor inestimável. V., sem se valer de protocolos e trâmites teóricos, afirma alguns pontos fundamentais da esfera da composição ficcional.

O primeiro, o que mais me chamou a atenção foi ao dizer que mais vale "sugerir" do que explicitar, o que é um traço significativo de outro gênero literário: a poesia, sobretudo a poesia simbolista.

Um segundo é quanto ao que se refere ao "silêncio' na estrutura ficcional, seja conto, novela, romance. drama, teatro (na forma escrita).

Uma notável professora que tive de psicologia educacional me ensinou que o silêncio é também "comunicação". Alegava a estudiosa que não é possível ficar em silêncio sem se comunicar. Realmente, uma grande sacada de minha ex-professora.

O terceiro ponto reside na sua afirmação de que - e isso é por demais digno de nota - na vida não chegamos mesmo a compreender as pessoas mais íntimas que nos rodeiam há anos. Eu diria mais, me lembro de uma imagem que tenho sempre presente: a da multidão que passa por nós. Vemos uma pessoa e talvez seja aquela a última vez que a vimos na vida. Na ficção, mutatis mutandi, se dá o mesmo. É preciso fazer-se o recorte regido pela seguinte série de elementos constitutivos na ficção: personagem, enredo, espaço, tempo e visão do narrador/autor e tratamento específico e basilar da linguagem literária à qual tudo se resume e se transforma em objeto estético.

Com o avanço dos estudos teórico-críticos, cada vez mais se compreende o quanto o leitor é relevante na interpretação de uma obra literária. E aí podemos citar correntes do pensamento teórico como a "estética da recepção", de Hans Robert Jauss, e outras ramificações da crítica fenomenológica de Edmund Hussell, como a "reader-response criticism", de Stanley Fish e Wolfgang Izer, ou de outros teóricos com George Poulet e J. Hills Miller.Tais abordagens têm o leitor como um dos pilares na compreensão e exegese da obra literária.

Essa brevíssima digressão se enquadra perfeitamente no que V. entende por narrativa.

Um último aspecto que inferi de sua mensagem diz respeito à concisão que é muito bem-vinda em tempos rápidos e revolucionária da era digital.

Julgo que o diálogo franco com um ficcionista, na minha condição de ensaísta e crítico, sempre foi salutar na vida literária sem, no entanto, ser parcial, submisso ou hipócrita.

Um abraço do


Cunha e Silva Filho

quinta-feira, 21 de abril de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo II

Foto meramente ilustrativa

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

Capítulo II

O DONO DO CÉU

Elmar Carvalho

Marcos Azevedo cursava o terceiro ano ginasial no Liceu Eborense. Tinha certo pavor à matemática, e estudava apenas o suficiente para passar de ano. Entretanto, era um dos primeiros alunos em História, Geografia, Português, Literatura e outras disciplinas da área de Humanidades.

Ele e mais cinco colegas do Liceu idealizaram um jornal mural, que tinha colunas com notícias, informações sociais, artigos, crônicas, contos e poemas. Era um de seus principais colaboradores, sobretudo com matérias literárias. Eventualmente divulgava seus textos através de fotocópias e mimeógrafo. O Arauto, assim se chamava o jornal estudantil, dispunha de um talentoso desenhista e pintor, Mário Cunha, que lhe fazia as caricaturas, charges e ilustrações. Ele e Marcos eram grandes amigos.  

Por intermédio de seu pai, vez ou outra, publicava contos e crônicas no jornal tipográfico A Batalha, o único de Évora, na época. Escrevia seus textos à mão, com um emaranhado de correções, cortes e acréscimos, e depois os datilografava na velha Remington de seu pai. Por estudar à tarde, reservava a manhã para ler livros literários (muitos deles tomados por empréstimo de particulares e da biblioteca pública), bem como estudar e escrever.

Por volta das nove horas, saiu com o objetivo de se encontrar com seus amigos no Liceu, e trocarem as velhas matérias por novas, para que o jornal mural não perdesse a grande receptividade que tinha entre os alunos e professores do colégio e mesmo entre outras pessoas da cidade.

Ao passar pela Vila Inglesa, que tinha um grande terreno descampado na frente, viu uma linda garota loura, muito alva, de pele muito fina e sedosa, de olhos azuis. Ouvira falar que ela era uma neta do alto comerciante James Cavalcante Taylor, proprietário da Casa Britânica, a mais poderosa empresa do estado, com filiais em várias cidades do Brasil.

Marcos olhou para a jovem e lhe admirou as curvas e a beleza longilínea e esbelta; seus cabelos longos e dourados faiscavam à luz do sol, levemente agitados pela brisa que vinha do grande lago Galileia, situado perto. O rapaz, além de sua discreta timidez, ou por isso mesmo, cultivava certo retraimento orgulhoso, nos primeiros contatos. Mesmo assim olhou novamente para a ninfa, que lhe observava, a segurar sua nova e cara bicicleta, cheia de enfeites cromados e reluzentes. Seguiu adiante, sem apressar ou diminuir a velocidade.

Marcos não estranhou o olhar da moça, afinal era considerado um belo tipo de rapaz, moreno claro, de boa estatura e olhos esverdeados.

– Ei! Menino, venha cá – ouviu a garota chamá-lo, com uma inflexão que lhe pareceu levemente imperiosa. Foi até onde ela estava, com as suas roupas caras e a sua rica bicicleta. Notou-lhe certo desdém no semblante e o olhar incisivo de quem se considerava acima dos outros.

– Você sabe de quem é esta Vila? É do meu avô.

E vendo estampada a perplexidade nos olhos do rapaz, continuou de forma fria e com certa arrogância:

– Você sabe de quem é este terreno onde nós estamos e que vai até acolá?... – e estendeu o indicador, como se quisesse abarcar o mundo todo. É do meu avô.

Marcos ficou decepcionado com essa moça tão linda, mas tão tola em sua ridícula presunção. Mais do que decepcionado ficou aborrecido, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ele não sabia, algumas vezes, se conter, especialmente quando achava que o seu amor próprio havia sido golpeado; e se tornava impulsivo, sem medir as consequências de seus atos ou palavras. Por isso, fixando nos olhos a bela ninfa dourada, de rosto angelical, disse com toda sua altivez e desprezo:

– E, por acaso, seu avô é também o dono deste céu que nos cobre e deste ar que respiramos?


Virou-lhe as costas, e sequer ouviu o seu arremedo de resposta. Seguiu firme, com os versos do poeta Carlos Pena Filho a lhe borbulharem na cabeça e na alma: “Deu-lhe o frio esquecimento. E mais não podia dar.” Contudo, não a esqueceu inteiramente, e aquela beleza de cachopa presumida e fútil ainda o perseguiria por muitos anos.   

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Escolas militares, urgente!


Escolas militares, urgente!

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Colégio Estadual Governador Dirceu Arcoverde, de Teresina, próximo à Avenida Kennedy, fundado em 1978, dirigido, durante anos, por autoridade da Polícia Militar, mas sem regime militar. Só em 2015, a secretária de Educação, Rejane Dias, do PT, inaugurou as novas instalações e instituiu a experiência do regime militar, iniciativa brilhante que já vem produzindo excelentes resultados e aplausos, tanto dos 400 estudantes matriculados no ensino médio, em regime integral, quanto das famílias.

         Percorrendo corredores e salas, acompanhado por uma psicopedagoga ou inspetor militar, fardado, tive a sensação de voltar ao passado das escolas públicas, dirigidas por respeitáveis diretores e professores, cuja autoridade era aplaudida pelos estudantes e pais. Cantava-se o Hino Nacional, em pé, postura ereta, seguida de preleções cristãs e cívicas. A disciplina estabelecia fardamento, calçados e meias padronizadas. Não se forneciam livros e refeições de graça, apenas merenda rasa.

         A Escola Dirceu Arcoverde revive a experiência que deu certo, no passado, e que produziu cidadãos de notável conduta cristã e patriótica, que resplandecia na organização da família.

         Veem-se estudantes impecavelmente fardados com insígnias militares, moças e rapazes de boina na cabeça, em fila, eretos, cantando hino cívico, ouvindo a “Ordem Unida”, sobre disciplina, a marcha, continência, oração, missa ou culto evangélico, ensino e práticas culturais. O prédio nem se assemelha ao desconforto, imundície, instalações improvisadas das escolas públicas, em geral.

         Apenas em Minas, mais de 20 mil alunos matriculados em nove escolas do Exército e da Polícia Militar. O Estado de Goiás coloca-se à frente. Segredo? Normas rígidas, consciência cívica, exercício do dever, inclusive ético e religioso.

O sistema de educação militar expande-se pelo Brasil com aplauso dos próprios estudantes, mas criticado por movimentos de esquerda marxista, inclusive em Teresina, onde funciona a primeira escola. O policial militar que me acompanhava orgulhava-se de mostrar o refeitório com instalações modernas, qualidade dos lanches e refeições acompanhadas por nutricionista: “Aqui, tudo é limpo, disciplinado e conservado. E de graça. Malandro não quer vir pra cá, porque sabe o duro que vai dar, inclusive para passar no teste seletivo”. E adianta: “A procura por uma vaga é diária”.

A experiência da escola militar, no Piauí, apenas começou, com a brava coragem de Rejane Dias, oriunda de um partido frouxo para com desocupados, e aberto a direitos, sem cobrança de deveres e méritos. A secretária poderia avançar, começando pelo Liceu: confiando, pelo menos, a direção e coordenação a educadores militares. Nem precisaria chamar a polícia para se postar à frente do colégio para combater criminosos.


Em meio às críticas, um fenômeno curioso, alheio a tudo, chama a atenção: a sociedade que busca o conhecimento que liberta, cresce, cada vez mais, a demanda por colégios militares pelo país.   

terça-feira, 19 de abril de 2016

Comentário sobre o 1º capítulo de Histórias de Évora


Comentário sobre o 1º capítulo de Histórias de Évora

Cunha e Silva Filho
Cronista, memorialista e crítico literário

"Histórias de Évora". Esse é o título de um livro de ficção no gênero romance, conforme o próprio autor anuncia, nesse espaço de seu conhecido blog, esse novo trabalho de sua vida de escritor.

Não é sua estreia de ficcionista, visto que anteriormente, a espaços, já escrevera textos que eu poderia rotular de ficção. Foram mini-contos, ou mesmo contos mais longos.

O título faz pensar em uma série de contos, mas creio ser apenas um modo de referir-se à forma contínua de uma unidade de textos que avancem em direção a uma estrutura de maior fôlego com a intenção de amoldar-se ao gênero do romance, de resto, já declarado pelo próprio autor: "Este romance será publicado..." [...]

Seguindo o costume de outros autores, cada capítulo terá um título alusivo a episódios específicos desenvolvidos na trama.

"Triângulo encantado" é um desses episódios. Já nele surgem alguns elementos estruturais da narrativa que, pelo menos nessa parte, dá um andamento no qual se percebem o interior e o exterior de uma personagem de nome Marcos, uma adolescente em seus primeiros anos e em toda a sua força da libido, irrefreável no alvorecer da puberdade.

Neuza é o pivô desse vendaval de sensualidade sexualidade.

Espaço e tempo são delineados: o jovem está em sua própria casa. Tem irmãs, tem seus pais. E tem a empregada, Neuza, o fruto proibido que é preciso desvendar.

Entretanto, ao fixar a vista para uma porta entreaberta, numa madrugada silenciosa, defronta-se com uma espécie de visão do paraíso carnal, numa cena eletrizante, enlouquecedora.

À sua frente seus olhos se detêm na parte mais sensível de seu arroubo juvenil.

O "triângulo encantado" é um sintagma que marca para sempre a imagem do sexo feminino num momento de quietude corporal e de êxtase, misturado ao desejo incontido mas refreado pelos interditos ou códigos de honra familiar e medo de reações tanto decorrente do objeto cobiçado quanto do medo de transgredir padrões arraigados na conduta familiar, sobretudo por ocorrer no recesso sagrado do lar.

Aquele objeto proibido provoca o frêmito da posse quanto ao sentimento abortado de mais uma vez repetir-se aquela cena em fogo.

Marcos se surpreende com o despertar de Neuza ao flagrar o adolescente fruindo a antecipação orgástica.

Ele teve a certeza de que não seria recriminado por ela diante de seus pais. Ficaria entre os dois apenas aquele instante de êxtase secreto em início de uma cena viva de nudez.

A descrição visual é perfeita nos seus traços firmes do desenho geométrico expresso pela metáfora do sexo.

É nesse ponto que o jogo da linguagem se torna um componente primordial da descrição com seu potencial de sensualidade e volúpia.

Repare-se que nesse capítulo não há diálogo explicito. Tudo se constrói na base da visualidade voltada para o centro deflagrador da cena inesquecível e jamais fisicamente apagada da memória do adolescente posto que misturada com a frustração da vontade não satisfeita.

A linguagem opera no texto, sem descambar para o grotesco e o pornográfico rasteiro, como se fora uma tomada de uma cena fílmica, em close focando toda uma região do corpo feminino que a masculinidade não se cansa de cultuar com a obsessão e a curiosidade desde tempos imemoriais, seja na pintura, na escultura, seja na fotografia, seja no cinema ou teatro.

“O triângulo encantado" é o fetiche supremo da masculinidade ou até mesmo para as cultivadoras do lesbianismo.

Volto ao título e fico a atinar: por que Évora? Ao que tudo indica , será um nome de lugar. Agora, me lembro, não sei por que, de Eça de Queirós, assim com da cidade de Évora, em Portugal. Há alguma ligação intersemiótica com o espaço físico do romance de Elmar Carvalho? Só saberei quando ler os próximos capítulos.

Esse início já me aponta para uma boa narrativa. Esperemos que o seja.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

GRATIDÃO AUDÍVEL


GRATIDÃO AUDÍVEL

Jacob Fortes

Agradeço a DEUS pelas bênçãos inumeráveis: pela vida; pela saúde; pela água; pelo ar; pelo pão; pela família; pela pátria (escangalhada, vilipendiada); pelos parentes; pelos amigos; pelos calos de cada mão; pela fauna e flora; pelos que me serviram (não como a servos: estes nunca os tive; nunca os terei).

Apesar de reconhecer esses generosos benefícios, confesso não viver consoante a vontade de Deus, inclusive porque, mortal reles e mal iluminado, não aprendi a reconciliar-me com todas as coisas do universo. Mas bem sabes, ó DEUS — empenhado em perdoar aos que delinquem — que a perfeição não é característica dos humanos.


Obrigado meu DEUS, por tudo. Não TE evocarei em vão, mas se encontrar-me turvo invocarei a TUA misericórdia!    

O primeiro magistrado de Bom Jesus do Gurgueia

Prédio do TJPI

O primeiro magistrado de Bom Jesus do Gurgueia

Licínio Barbosa (*)

Lembro-me de vê-lo, aos 6 anos de idade, ainda na fase de alfabetização, entrando na igreja do Bom Jesus, participando das novenas, interagindo com os bonjesuenses de todas as categorias, magro, alto, comunicativo , acessível a todos, – velhos, jovens e crianças, sempre sorridente. Essa acessibilidade deu-me coragem de ir até ele e fazer-lhe uma indagação:

– Doutor, para chegar a ser juiz de Direito o senhor começou do ABC?

– O magistrado parou, olhou-me cheio de curiosidade, e retruco – Sim, Licínio. Por quê?

– Porque eu também quero ser doutor, mas estou achando muito difícil – justifiquei.

Casado com Dona Othília Cardoso de Vasconcelos Lopes, teve, desse feliz consórcio, os filhos Maria Cristina, (que povoou o meu imaginário infantil), Maria Celina, Maria José, Benito, Zélia, Zita, Miriam, Zenaide, José (Zezito), Anete, Luiz (Luzito) e Honorina. Dessa nominata de 12 filhos, algumas ilações: ex-aluno de Seminário, deu às filhas 4 nomes de Maria (uma das quais Miriam), um com o nome de José (marido de Maria), e um filho de nome Benito, em homenagem ao seu ícone político, Benito Mussolini, à época em ascensão, na Itália.

O mítico magistrado de Bom Jesus nasceu a 15 de janeiro de 1905, no povoado de Ipiranga, mais tarde elevado à condição de município autônimo, côo cidade, e era filho de Pedro Paulo de Oliveira Lopes e de Dona Ana de Holanda Lopes.

Após o Curso de Humanidades nos Seminários de Santo Antônio (de São Luis, Maranhão), e Sagrado Coração de Jesus (Teresina-PI), ingressou, já casado, na Faculdade de Direito, onde concluiria o Curso Jurídico, em 1936, colando grau na primeira turma da Faculdade de Direito. Decidiu, então, seguir a carreira da magistratura, sendo nomeado Juiz Substituto do Termo Judiciário de São Pedro do Piauí, no ano de 1936. Quatro anos mais tarde, 1940, foi promovido a Juiz de Direito tendo o Termo sido elevado à categoria de Comarca, ano em que foi designado para a Comarca de Bom Jesus do Gurgueia, Comarca de 2ª Entrância, donde retornaria à Comarca de São Pedro, então elevada a Comarca de 2.a Entrância, no ano de 1950.

No ano de 1954, foi promovido à categoria de Juiz de Direito de 3ª Entrância com jurisdição sobre a Comarca de Amarante/PI, cidade à margem direita do Rio Parnaíba, cantado em famosos versos por Da Cosa e Silva, o mais famoso poeta do Piauí.

Após um ano de judicatura, em Amarante, foi removido, a pedido, para a Comarca de Oeiras, a bicentenária ex-Capital do Piauí, onde permaneceu de 1955 a 1962, quando foi promovido para a Comarca de Parnaíba, de 4ª Entrância, famosa Cidade do Delta, e, também, na prosa memorialista de Humberto de Campos, notadamente por seu legendário Cajueiro, sem dúvida a página mais brilhante das memórias do grande poeta de Miritiba/MA.

Convocado pelo magistério, lecionou Geografia, Latim e Língua Portuguesa no Seminário Sagrado Coração de Jesus, de Teresina, a Capital do Conselheiro Saraiva, seu fundador, no ano de 1852. Foi, também, professor da Escola Normal Oficial de Oeiras/PI, onde lecionou Língua Portuguesa de 1960 a 1962. Apaixonado pelo magistério, também Economia Política, Direito Usual e Prática Jurídica na Escola Técnica de Comércio, e História da Educação em Parnaíba.

Na capital Teresina, dedicou-se ao Jornalismo, onde manteve a coluna diária “Em Prosa e Verso” no jornal “O Dia”. Também manteve o programa radiofônico “Alma e Coração” na “Rádio Difusora”, onde difundia sua produção poética.

Foi, também, membro do Conselho Estadual de Educação, nele ocupando o cargo de Vice-presidente.

No ano de 1971, foi eleito para a Cadeira 25 da “Academia Piauiense de Letras”, onde tomou posse no dia 15 de janeiro de 1972.

Na sua passagem pela Comarca de Bom Jesus, onde o conheci, deixou uma auréola de simpatia, e companheirismo, mantendo informal relacionamento com toda a comunidade. Era o período da Segunda Grande Guerra, ocasião em que o único contato com o mundo externo era o “Repórter Esso”, transmitido de hora em hora. Como ainda não havia o transistor, o rádio era alimentado por enorme bateria carregada por dois negrões, que se alternavam na roda de bolandeira, de transformar a mandioca em farinha. Somente o Juiz tinha rádio, na cidade. Assim, os mais próximos se reuniam, à noitinha, em sua residência, diante da Praça do Mercado, sob a folhagem farfalhante das oiticicas frondosas, para ouvir, religiosamente, entre 7 e 8 horas da noite, a indefectível “Voz do Brasil”, criada na “Ditadura Vargas”.

Passaram-se os anos, e, circunstancialmente, mantive contato epistolar com o saudoso Acadêmico A. Tito Filho, ex-presidente da Academia Piauiense de Letras que, a meu pedido, providenciou fotocópia integral de “Vozes da Terra”, livro de poemas de Luiz Lopes Sobrinho, única obra que legou à posteridade.

Trata-se de obra de poesia, 170 páginas, apresentação do presidente A.Tito Filho, e notícia biográfica do autor, confrade de Tito Filho.

Os mais de 100 poemas são bem metrificados, todos rimados, com destaque para o poema que dá nome à obra, em homenagem a Dom Edilberto Dinkelborg, Bispo da bicentenária Oeiras, primeira Capital do Piauí.

Alguns desses poemas são circunstanciais, tais como, além do principal, os poemas “A farda”, “A toga saúda a farda”, “Saudação”, “Um bilhete”, “Saudação aos advogados”, “Ao cônego Cardoso”, “Parabéns, Monsenhor”, “Debutante”, “Neoprofessoras”, “Presente de aniversário” I e II, “Petição ao governador”, “Salve, Parnaiba”, “Hino a monsenhor Roberto”, “Acróstico” I e II, “O tesouro do Banco Nacional do Norte”.

O poema que dá nome à obra, composto de 50 estrofes em decassílabos, ao estilo de “Os Lusíadas”, bem poderia compor uma obra autônoma, pela sua estrutura, e feição singular.

De qualquer forma, Luiz Lopes Sobrinho é um bom poeta que figura, sem rubor, ao lado dos grandes poetas do Piauí, tendo como corifeu o inigualável Da Costa e Silva.

(*) Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbosa@uol.com.br     

domingo, 17 de abril de 2016

Seleta Piauiense - Luiz Lopes Sobrinho


Cadê o Dinheiro?!

Luiz Lopes Sobrinho (1905 – 1984)

Seu doutor Secretário das Finanças,
Onde foi que o dinheiro se escondeu? 
Será que o Estado já se fez judeu,
Também vive de usuras e de lambanças?

Mortas se vão as nossas esperanças.
— Nossas não! pois vossência não sofreu
A fome e o desespero, como eu,
Sem, nunca, ter um dia de bonanças!

Vamos ver, seu doutor, onde se esconde
O dinheiro do Estado.  Explique, onde,
Que há tanto tempo não nos mostra a cara?

Por que, pra caraveles e banquetes,
As notas voam, tais como foguetes,
E o barnabé do Estado não se ampara?! 

sábado, 16 de abril de 2016

ENCONTRO DE APELIDADOS EM AMARANTE


ENCONTRO DE APELIDADOS EM AMARANTE

Luís Alberto Soares (Bebeto)

                Numa manhã de sábado na movimentada Churrascaria Ipanema (Amarante - PI) do popular Afonso da Dora, coincidentemente um encontro engraçado de apelidados que saboreavam variados pratos e bebidas. Numa mesa estavam Lobinha, Bem -Ti-Vi, Pardal e Paquinha, bebendo e discutindo política. Em outra mesa, encontravam-se Peixe, Pirão, Curandor, Canela, Titela e Camarão, eles comentavam política e futebol. Zé Galinha, Capão e Mandubé tomavam cerveja com tira-gosto de frango assado. Xaxim, Mundu, Macarrão, Labita e Zé Tiúba na geladinha com peixe e pirão. Bufa Quente, Maria Acaba Festa, Pituiba, Perneta, Bolacha e Mandioca, num balcão bebendo cachaça com tira-gosto de umbu. Zé Bagaço, Zé Prego, Zé Pescoço, Leitoinha, e Rato, bebiam, comiam panelada e dançavam ao som da música do doente mental Chico Lopes.


A Churrascaria tava tão lotada que houve ajuda do Facão (ex-empregado daquela casa), no atendimento aos Clientes. Pipi, Espoleta, Sibita, Nazaré Cambão e Pirrola que se encontravam na Churrascaria Ipanema, saboreavam deliciosos pratos e falando muito da Cultura de Amarante. O Caché Vencido e o Pontapé apareceram por lá, demoraram pouco. O Papagaio, ex-jogador de futebol de Amarante e do Flamengo de Teresina, neste dia, não quis saber de bebida, preferiu comer milho assado. O Pé na Cova e o Já Morreu apareceram por lá, mas não tiveram vez. Os “mototaxistas” Panelada, Lapau e Pé no Freio estavam de prontidão na churrascaria para corridas. O Simpático Cascudo que se encontrava conversando com o Besouro, começou a sorrir e disse: “Lá ta lotado de colegas”.  A Maria Veneno, Cabelinho e Rabo Seco ficaram espiando de longe a grande movimentação dos apelidados na churrascaria.      

quinta-feira, 14 de abril de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo I

Foto meramente ilustrativa

HISTÓRIAS DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

Capítulo I

O TRIÂNGULO ENCANTADO

Elmar Carvalho

            Eram duas horas da madrugada quando Marcos Azevedo acordou, com sede. Dirigiu-se à cozinha, onde ficava a geladeira. No percurso, notou que o quarto das irmãs estava com a porta entreaberta e com a lâmpada elétrica ligada.

Retrocedeu um pouco, para melhor olhar. Viu, então, expostas na rede, as roliças e rijas coxas de Neuza, a empregada, entreabertas. Eram brancas, grossas, firmes, e deviam ser macias. Uma tenra, quase transparente e dourada penugem as recobria.

Imaginou que deveriam ser suaves e agradáveis ao tato, principalmente se tocadas com as pontas dos dedos. Desceu o olhar em direção aos pés, em que não viu nada de especial. As panturrilhas, contudo, eram proporcionais às coxas, roliças, rijas e torneadas com esmero.

Em seguida, com o coração em disparada, com medo de que Neuza ou alguma das irmãs acordasse, abriu a porta um pouco mais, para olhar o que estava acima das coxas; ou o encaixe destas, como gostava de dizer um seu amigo. E viu o que procurava, com tanta ansiedade e medo.

A calcinha branca e simples mal cobria o grande, altaneiro e vertiginoso vértice. O púbis castanho, sem dúvida bem rebaixado, ornava a borda da sumária peça íntima. Entreviu o sopé e parte da encosta dos carnudos e protuberantes grandes lábios. Marcos sentiu uma tontura, quase como se fosse desmaiar. Mesmo assim viu a depressão em que se fendia a genitália, como um pequenino regato, que parecia morder o vinco central da calcinha. Era um bem esculpido delta, desde o monte de Vênus até a curvatura em direção ao períneo.

Sua vontade de tocá-lo era enorme. Espalmar-lhe a mão, e tê-lo em sua concavidade. Parecia um animal, que tivesse vida própria e palpitasse. Fez um esforço muito grande para se conter. Sua timidez e natural retraimento tentavam conter o ímpeto de sua mal desabrochada adolescência. Foi então que a moça abriu os olhos. Marcos temeu gritos escandalosos, estridentes, e saiu em passos de felino para a cozinha. Ficou aliviado com o silêncio. Ficou com medo de que ela lhe viesse ao encontro, para exigir explicações. Mas isso também não aconteceu. Tampouco no dia seguinte ela denunciou o fato aos seus pais.

Sentiu que ela tivera a exata compreensão do que acontecera, e lhe perdoara, ou mesmo se sentira envaidecida daquela silenciosa, inerte e contida contemplação fortuita. Foi a primeira vez que vira uma mulher (quase) desnuda. Pela primeira vez enxergara de tão perto e com tanta nitidez uma cona aureolada gloriosamente pelos esquálidos e pálidos pelos pubianos. Foi o marco inicial e inesquecível de seu adolescer.

Como um símbolo incandescente ficou em sua memória para sempre aquele triângulo encantado, que jamais veria novamente. Como no poema de Manuel Bandeira, foi o seu alumbramento, a sua visão do paraíso na terra e da terra.   

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O clima está quente demais: perigo


O clima está quente demais: perigo

                       Cunha e Silva Filho
  
             O bem é que não andam  fazendo. Em 1964, quando vi para o Rio de Janeiro, a situação  meteorológica  na cidade  do Rio de Janeiro  era bem diferente da de hoje. Diferente porque a estações do ano  me pareciam  mais regulares, mais cíclicas. Era mais previsível  o tempo mais quente do mais frio e, neste último,  eu sentia  que tinha frio mesmo. Precisava de andar com roupa adequada no frio. Era obrigado a envergar uma japona,   ou um casaco para me resguardar  da baixa temperatura.
            Com os anos se passando,  sentia que  a cidade ia ficando mais quente. Alguns  leitores  bem se lembram do filme  “Rio, 40 graus", cujo roteiro e direção  é de Nelson Pereira dos Santos.. Ora,  hoje esse nível de calor  foi ultrapassado,  sem falar  na  sensação térmica, que não era tão  alta como agora. Gostava, no entanto,  quando vinham os meses de frio até chegar ao máximo no mês de junho e julho.
           A população hoje usa muito mais o ventilador  ou  o ar condicionado do que outrora. Os dias quentes são insuportáveis, ainda mais cm o reforço  do mormaço que  torna o ar  parado,  nos dando uma sensação de sufoco e nos forçando a sair de lugares fechados para ver se, lá fora,  podemos  respirar  melhor.
         Eu nunca gostei do calor,. Desde menino, acompanhando minha mãe ao Mercado Velho em Teresina, no Piauí,  mal me aguentava com  a temperatura   elevada. Andava me queixando com mamãe: ”Que caiô, danado.”  Ao chegar em casa, encontrando  meu pai, reclamava de novo com ele: “Que caiô, danado!” Este fato da infância refiro no meu livro de memórias Apenas memórias, ainda a ser lançado. Cresci,  assim, não  gostando  do calor e assim ainda hoje resmungo muito com as altas temperaturas   carioca, de tal sorte que, no tempo do verão, ou mesmo  ultrapassando este, durmo  ou com  ventilador o tempo todo ou com ar-condicionado.
          O calor não me deixa bem, me amolece o espírito,  com vontade de ficar sem fazer nada. Alguém já afirmou  que o Brasil não tem  grandes filósofos porque  a terra é quente na maior parte do país. Sei que isso  é uma balela, mas quando afirmam isso,  fazem uma exceção:  tivemos o Farias  Brito, filósofo espiritualista, autor de A finalidade do mundo (1895-1899-1905, em três volumes) e Mundo interior (1914)
        Um amigo indiscreto  me sussurra ao ouvido: “Temos professores de filosofia, não filósofos.” Acho que está  sendo muito exigente, não? Porém, ele me  retruca  ressaltando que, no país, quem termina filosofia, malgrado tenha doutorado ou pós-doutorado,  é chamado em geral  de filósofo, ainda que  não tenha  formulado  uma  teoria  nova que pudesse avançar  os estudos  da  filosofia no mundo e entre nós.Creio, entretanto, que meu  amigo indiscreto tenha sido muito  exigente nesse aspecto,  pois o Brasil teve um  Miguel  Reale (1910-2006) e contar há muito tempo  com grandes   pensadores em várias áreas do conhecimento.
      Agora,  disponho de um forma antiga  de me sentir  refrescado,  o uso da rede, antigo costume  que tínhamos em  Teresina, cidade que registra sempre  uma temperatura  alta, quarenta graus  ou,   às vezes,  trinta e sete ou trinta e oito  graus.
     Só que,  em Teresina,  de manhã,  sopra  amiúde uma brisinha gostosa, o que  vem como  um bálsamo  para o corpo e a mente. A rede, sem dúvida,  é boa para o calor. Passei da infância até à adolescência  dormindo em rede. Só comecei a usar a cama aqui no Rio de Janeiro. Dizem que os nordestinos têm a cabeça, em geral, chata, porque dormiram muito  em rede. Isso não tem confirmação científica. Ou tem? Nunca me dei ao trabalho de era se existe algum estudo sobre  a forma da cabeça  chata
      Voltemos ao  calor, que é matéria  séria. Sem sombra de dúvida,  a o planeta Terra ficou muito mais  quente com tanta   coisa ruim que se fez com  esse maltrato  astro do universo. Além disso,  com o avanço  científico-tecnológico,  o aumento  de fábricas poluidoras  ao redor  do planeta, soltando  volumes gigantescos de gás carbônico, com  o gigantismo  de número de carros   poluentes descarregando  CO2, com as  inúmeras  experiências atômicas já realizadas por potências  militares, com as escavações funestas  e continuadas  no subsolo.
       Com as perfurações  de mineradoras  por toda a parte, a Terra  tem sofrido  o chamado efeito  estufa, cuja consequência mais  nefasta  é o aumento da temperatura  do nosso planeta. A par disso,  o aquecimento  terráqueo  está  produzindo  sérios transtornos nas regiões polares, com a consequente degelo  das calotas, as quais,   por seu turno,   vão   elevando  o volume do nível dos oceanos e mares.
      Alguns estudiosos subestimam  essas causas, talvez mais levados  por razões de ordem econômica mas perigosamente  negligenciando  os efeitos desastrosas ao meio ambiente e ao ecossistema.  As diversas  reuniões  de cúpulas  de organismos internacionais para debaterem as questões climáticas, sobretudo   da parte de países  mais poluidores (Estados Unidos, China, por exemplo) que não  desejam  ter  prejuízos econômicos,  parecem não ter tido, até agora, maiores sucessos a fim de reduzirem  substancialmente   os efeitos  danosos  ao clima  em escala global.
     Países em desenvolvimento como o Brasil e outros devem fazer  também seu dever de casa a fim de darem sua real contribuição   no sentido de evitarem  que o clima  no planeta  não se deteriore ainda mais.É bem verdade que sintomas  desse  desequilíbrio  meteorológico já está  dando  péssimos sinalizadores, segundo  podemos atestar com  situações  incomuns de inundações, chuvas  torrenciais, escassez de chuva em algumas partes do país,  desaparecimento de  fontes  hídricas,  diminuição do volume d’água de nossos rios, inclusive do rio São Francisco e de outras  rios  do país.
        Ninguém pode negar que  as condições climáticas  em nosso planeta  fogem  aos  parâmetros  de alguns  anos  passados, assim como  o aumento da temperatura   é algo  que nos  põe em alerta.
        Se não forem  contidas todas  as causas  provocadoras desses desastres climáticos e de uma espécie de  desarranjo das divisões periódicas das estações do ano no país e no mundo, a humanidade inteira sofrerá   grandes e incontornáveis transtornos diante de uma natureza  que, por assim dizer,  se vinga sempre que  ela for  vilipendiada  pelo  homem.

       Os avisos da própria natureza já são mais do que suficientes  para  que reflitamos  sobre o que nos poderá  acontecer caso persistamos  em destruir  o que a natureza  nos  prodigalizou. Não provoquemos a fúria da natureza, pois, na luta entre o homem e ela, vencedora será a Mãe-Natureza.