sábado, 31 de dezembro de 2016

Costa Alvarenga: O patriarca da insuficiência aórtica

Costa Alvarenga: O patriarca da insuficiência aórtica

Reginaldo Miranda 
Da Academia Piauiense de Letras


Costa Alvarenga: O patriarca da insuficiência aórtica
                          Foi Pedro Francisco da Costa Alvarenga um renomado médico, professor e cientista luso-brasileiro. Ele veio ao mundo em Oeiras, então capital da província do Piauí, no ano de 1826, filho do tenente Egídio da Costa Alvarenga, um dos baluartes nas lutas pela Independência. Era neto paterno de d. Matildes Efigênia de Sant’Ana e do capitão Francisco José da Costa Alvarenga, homem culto e inteligente que, embora sem as láureas acadêmicas, fazia as vezes de médico na província, natural de Lisboa, onde nasceu no ano de 1748, mudando-se para Oeiras, onde faleceu em 1809, licenciado, cirurgião anatômico aprovado e incumbido do curativo dos escravos do Real Serviço. Foram suas tias, pelo costado paterno, Catharina, Rosa e Porcina da Costa Alvarenga.
Em sua terra natal iniciou-se nas primeiras letras, sendo alfabetizado ainda muito jovem. Entretanto, mal completara oito anos de idade, em 1834, observando seus rasgos de inteligência e para melhor conduzir a sua formação intelectual seus pais o encaminharam ao velho continente, para estudar em Lisboa, na companhia de parentes. Foi então que o pequeno menino de Oeiras pôde prosseguir em seus estudos, para isto contando com as lições dos principais mestres de seu tempo. Aluno de gênio incomum, aliado à extraordinária força de vontade, ainda adolescente cursou Matemática na Escola Politécnica e Zoologia na Academia de Ciências, sendo premiado em ambos os cursos por seu desempenho escolar. Em 1845, matriculou-se no curso de Medicina da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, concluindo-o com louvor em 1850, tendo sido mais uma vez premiado em todos os anos letivos. (Jornal de Pharmacia e Sciencias Acessórias de Lisboa – 1849).
Depois de formado, rumou para a Bélgica, doutorando-se com brilhantismo pela conceituada Universidade de Bruxelas, em 1852. Durante todas as fases de sua vida escolar foi um aluno que distinguiu-se sem competidor. Dada a sua inteligência privilegiada foi insistentemente convidado a permanecer naquele país, não aceitando, porém, as inúmeras ofertas de trabalho. Sobre o assunto, mais tarde, assim noticiou o jornal A crença, de Lisboa: “Sabemos por pessoa fidedigna que na Bélgica foi o sr. dr. Alvarenga convidado por vários professores para o magistério, o que ele agradecera não aceitando, porque, disse ele, preferia servir na sua pátria. Como não havia pois de subir(mesmo a despeito dos inimigos da talento  e do trabalho) a igual dignidade entre nós, dedicando-se ele com toda a força de sua inteligência ao estudo da ciência que tem cultivado com tanto esplendor? (A crença, 11.07.1862).
De retorno a Portugal, iniciou o trabalho de atendimento clínico, tornando-se médico efetivo do Hospital de São José, da Santa Casa de Misericórdia, subdelegado de saúde e médico honorário da Câmara de Sua Majestade Fidelíssima. Foi, entretanto, inexcedível em sua luta de amparo aos enfermos durante as duas grandes epidemias de cholera morbus e de febre amarela que assolaram a capital portuguesa(1853 – 1856), assumindo a direção de vários hospitais especialmente montados naquela oportunidade. Por esse tempo adquiriu grande reputação, sendo chamado a toda parte. Era o médico de Lisboa. Segundo a imprensa de antanho, se não bastasse a sua profícua produção acadêmica, bastava ouvi-lo “para se reconhecer o médico que sabe fazer o diagnóstico das doenças de peito com precisão quase matemática. A auscultação, a percussão, a mensuração, assim como os demais meios de descobrir as doenças, têm no sr. Alvarenga um apaixonado cultor”. E mais, “em tão breves anos não é fácil adquirir neste país maior soma de conhecimentos teóricos e práticos do que possui o sr. dr. Alvarenga” (A Revolução de setembro, n.º 6045, de 8.7.1862; A crença, de 9.7.1862)
Concomitantemente ao atendimento clínico, dedicou-se com afinco e denodo ao ensino e à pesquisa, encetando vitoriosa carreira acadêmica. Em 1862, depois de consagradora aprovação em concurso público, assumiu a livre-docência de Matéria Médica da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde se formara doze anos antes. O seu desempenho nesse concurso foi acompanhado e aplaudido pela imprensa portuguesa, para quem o resultado correspondeu à expectativa, tendo o afamado clínico da capital justificado a sua merecida reputação. A segunda lição do certame, aplicada em 29 de junho, versou sobre a medicação estimulante, os alcoólicos e preparados amoniacais, tendo o candidato discorrido “durante uma hora com facilidade de locução, abundância de fatos e certeza de doutrina, que só podem ostentar o talento distinto e a inteligência desenvolvida pela aplicação aturada”. Acrescenta o periódico: “O ilustre opositor não é um mero expositor de doutrinas alheias; sobressai nas suas orações a crítica severa, mas esclarecida, que na atualidade mais do que nunca se torna necessária para se não desviar a ciência da verdadeira vereda que lhe traçou o imortal filósofo de Verulamio”(A Revolução de setembro, n.º 61038, de 29.06.1862).
Segundo o já indicado órgão da imprensa, em 3 de julho concluiu “as suas provas teóricas e orais no concurso (...) o laureado candidato(...). O erudito e talentoso opositor, falando da asfixia em geral, mostrou-se tão profundo fisiologista como lido nos mais abstrusos problemas da jurisprudência médica”. E sobre a conclusão do exame em 8 de julho, informa o mesmo periódico:  “O médico estudioso e consumado prático revelou à saciedade que pode ser ao mesmo tempo escritor fecundo, profundo teorista e hábil clínico, uma vez que a inteligência seja desenvolvida pelo estudo assíduo dos livros e pela lição que fornece a observação e a experiência à cabeceira dos enfermos. (...). Os seus numerosos escritos aí estão patentes para atestarem o que vale o nosso talentoso médico. Quanto à sua aptidão prática, a capital o sabe de sobejo; os doentes do hospital do Desterro que o digam; os facultativos que solicitam conferências que o atestem”(idem). O jornal A crença(11.07.1862) assim se expressou: “Felicitamos, pois o sr. dr. Alvarenga, por ter tido ocasião de mostrar mais uma vez o seu talento e profundos conhecimentos; à escola médico-cirúrgica de Lisboa por receber no seu grêmio mais um membro que a há de enobrecer tanto quanto tem ilustrado a medicina portuguesa dentro e fora do país”. Era, de fato, um orgulho da nação portuguesa.
Em 1853, fundou e tornou-se o principal redator da Gazeta Médica de Lisboa, conceituada revista que circulou até o ano de 1875, de onde vários artigos foram traduzidos e republicados em outras importantes publicações científicas europeias. Dada a sua notoriedade acadêmica, ingressou como sócio efetivo na Academia Real de Ciências e correspondente na Imperial Academia de Medicina do Rio de Janeiro, além de mais de trinta associações de ciências e letras da Europa. Foi agraciado com títulos e comendas em diversos países.
Realizou inúmeras descobertas científicas. Porém, o que mais notabilizou o seu nome foi a descoberta, em 1856, do sinal do duplo sopro crural da Insuficiência aórtica, também conhecido como “Sinal Alvarenga-Duroziez”. Ocorre que aquele conhecido cardiologista francês observara o mesmo sinal seis anos depois e então estava sendo ensinado na escola francesa com o nome exclusivo deste. Entretanto, Costa Alvarenga reivindicou seus direitos e a Academia de Paris, considerando que o sintoma já estava muito vulgarizado com aquele nome passou a denominá-lo homenageando os dois cientistas. Entretanto, alguns tratadistas, entre os quais o italiano Castellino e o brasileiro Miguel Couto, reconhecem apenas a primazia do luso-brasileiro denominando-o apenas por “sinal de Alvarenga”.
A par dessa importante descoberta, ainda divulgou “muitas outras obras magistrais, como, as têm qualificado os homens mais competentes, algumas laureadas, outras vertidas na língua universal, aconselhando alguns professores da faculdade de medicina em França aos seus discípulos a leitura”, principalmente aquelas “sobre doenças do peito, como muito instrutiva e ótimo guia no estudo da especialidade” (A crença, 11.07.1862). Entre as quais, destaca-se: Estudo sobre as variações de comprimento dos membros pelvianos na coxalgia(tese da formatura – 1850); Memória sobre a insuficiência das válvulas aórticas e considerações gerais sobre as doenças do coração(1855); Considerações sobre o cholera-morbus epidêmico no Hospital de São José de Lisboa(1856); Notícia do Relatório sobre epidemia de chólera-morbus no Hospital de Sant’Anna em 1856(1858); Relatório sobre a epidemia do cholera-mobus no hospital de SantAnna em 1856(1858); Apontamentos sobre os meios de ventilar e aquecer os edifícios públicos(1857); Esboço histórico sobre a epidemia de febre amarela na freguesia da Pena em 1857(1859); Anatomia patológica e sintomatologia da febre amarela em Lisboa no ano de 1857(1861); Como atuam as substâncias brancas e cinzentas da medula espinhal na transmissão das impressões sensitivas e terminações de vontade(1862); Estado da questão acerca do duplo sopro crural na insuficiência das válvulas aórticas(1863); Apontamento acerca das etocardias a propósito de uma variedade descrita, a traquocardia (1867); Estatística dos hospitais de São José, São Lázaro e Desterro no ano de 1865(1868);  Considerations et observations(1869); Da importância da estatística na medicina(1869); Elementos de termometria clínica geral(1870); Estudo sobre as perfurações cardíacas(1870); Da cinose(1871); De la therminologie generale(1871); De la thermosemiologie et thermacologie(1871); Anatomia patológica e patogenia das comunicações entre as cavidades direitas e esquerdas do coração (1872); Sintomatologia, natureza e patogenia do beribéri(1872); Bosquejo histórico e crítico dos meios terapêuticos empregados contra a erisipela(1873); Bosquejo histórico e escrito da cianose(1873); Grundzüge der Allgemeinen clinischen Thermometrie und der Thermosemiologie und Thermacologie(1873); Bosquejo histórico da percussão(1874); Do salicato de potassa no tratamento da erisipela(1875); Da propilamina, trimetilamina e seus sais(1877); Leçons cliniques sur les maladies du couer(1878); Tratado de matéria médica e de terapêutica pelo Dr. Mothmagel(1878); Farmacotermagenese(1880); Reclamations et reponses(1880); Des medications hypothermiques et hyperthermiques, et des moyens therapeutiques que les remplissent(1881); Theories de l´action therapeutique du tartre stibiè dans la pneumonie(1881); Apontamentos sobre os pontos de aplicação das vias de absorção dos medicamentos(1882); Fragmentos de farmacoterapiologia geral ou matéria médica e terapêutica(1883).
Em 1872, demorou-se longo tempo no Rio de Janeiro, tomando parte ativa nos debates na Imperial Academia de Medicina, de que resultou na publicação de um livro a respeito, lançado em 1873. Sobre esse período escreveu o notável escritor Machado e Assis ao folhetinista lusitano Júlio César Machado(1835 – 1890), que travou relações de amizade com Costa Alvarenga, que muito o honravam e não haveria de esquecê-las, chamando atenção para sua vasta capacidade e para a nomeada que tão justamente gozava este na Europa. De regresso a Portugal passou Costa Alvarenga pela Bahia, oportunidade em que medicou o jovem Rui Barbosa, diagnosticando anemia cerebral e subnutrição.
Faleceu em 14 de julho de 1883, na cidade de Lisboa, vítima de fulminante lesão aórtica, o mesmo mal que estudara por grande parte de sua vida. As cinzas de seu corpo repousam honrosamente na cripta da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Possuía apenas 57 anos de idade e já era um dos mais respeitados cientistas da Europa. No Brasil, é patrono da cadeira 10 da Academia Nacional de Medicina.
Apaixonado pela ciência e visando fomentar as pesquisas científicas instituiu em seu testamento um incentivo às academias de medicina de Paris, Lisboa, Bruxelas, Viena, Berlim, Filadélfia, Estocolmo e Rio de Janeiro, deixando-lhes uma fonte de renda permanente para premiar as principais pesquisas científicas. A denominação dada a essa premiação é uma declaração de amor à terra natal, que mesmo distante nunca morreu em seu pensamento, “Prêmio Alvarenga do Piauí”.
E como se não bastasse legou também à província do Piauí uma importância financeira suficiente para construção de uma escola em Oeiras, que somente foi construída muitos anos depois, recebendo o nome de “Grupo Escolar Costa Alvarenga”.

Foi, portanto, um cidadão benemérito, cuja fama correu mundo, mas nunca esqueceu a terra em que deu os primeiros passos e as velhas margens do riacho do Mocha, onde, certamente, brincou e em cujas águas banhou nas peraltices de criança. É justo, pois, que o Piauí também não lhe esqueça, rendendo à sua memória um preito de justa gratidão. É o objetivo dessa lembrança, além de dizer à juventude piauiense que esta terra é boa e produz excelentes frutos. Guardemos, pois, para sempre a memória desse grande cientista que honra e glorifica a terra piauiense.

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