sábado, 27 de agosto de 2016

São Raimundo Não Nascido


São Raimundo Não Nascido

José Maria Vasconcelos
Professor, escritor e cronista
        
         Se não nasceu, não viveu nem morreu nem ressuscitou. Certo? Não. Explico já o mistério.

         Anualmente, uma voltinha ao novenário de São Raimundo Nonato, paróquia do Bairro Piçarra. Nem parece com os anos da minha infância ou dos párocos capuchinhos que por ali passaram. Coroinha de sete anos, eu me apaixonava pelas noites festivas de leilões, barracas, mundão de gente que se deslocava de toda parte para a modesta capela de São Raimundo, 1955, que se erguia à direita do atual templo.

         Paupérrima Piçarra, piçarrenta, sem caçamento, sem água encanada. Um poço artesiano da Prefeitura ao lado do velho Mercado servia à população. A ponte de madeira sobre o Poti, no final da Higino Cunha. Por ali, passavam “caboclos” trazendo produtos agrícolas para vender na feira. Pela madrugada, caravanas de noivos, em cavalos, vestidos de branco, soltavam foguetes e se dirigiam ao templo para casar. Comerciantes “lavavam a burra”, vendendo de tudo. Vaqueiros a cavalo vinham para homenagear noite deles.

         Frei Eliézer, italiano queridíssimo na comunidade, iniciou movimento para construção de novo templo, moderno e gradioso, além de um prédio para serviço social. De motocicleta, levava-me para acolitar a missa, ligar o som, atender a periferia. Feliz, pois meu pai só dispunha de bicicleta, fruto da bodega. Na pobreza, Martinho e Dedé nunca negaram à Igreja serviços e ofertas. A Divina Providência multiplicou-lhes com a prosperidade.

         Antigos paroquianos recordam-se dos tempos heroicos de Frei Eliézer, abraçado à procissão de fiéis, nas tardes de domingo, dirigia-se a pé, até o Poti, para encher sacos de areia para a construção da igreja. No meio da generosidade coletiva, eu só suportava uma latinha de areia; o frade transformava o chapuz da batina em fardo. Exibia filmes, com entrada paga e promovia leilões. O milagre da multiplicação dos pães e peixes em doações e sacrifícios. Suado e exausto, ele servia de pedreiro no alto dos paredões.

         Uma convocação urgente da província transferiu Frei Eliézer de Teresina para Belém, ainda no início da cobertura do templo. O frade abateu-se profundamente.

         Dona Rita, 84 anos, reside ainda em antiga residência, frente ao templo. Sentada, contempla o que foi entregue à administração dos frades franciscanos. Desencantada, resume a nostalgia: “Aquilo não é a mesma coisa. Os frades nem ligam para o novenário. Só um tiquinho de gente nas quermesses. Até o marco da fundação do templo foi arrancado.”


         Arrancado, também, foi Frei Eliézer, que não experimentou o parto de seus sonhos. Arrancado do ventre de sua mãe, morta, foi Raimundo Nonato. Do latim, portanto, Não Nascido, no século 12 na Espanha. Sacerdote da Ordem dos Mercedários, perseguido por muçulmanos, na Argélia, por libertar escravos e cristãos da tirania. Preso, torturado e doente, regressou à patria e faleceu, quando era escolhido para cardinalato.   

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