sábado, 14 de fevereiro de 2015

Estranho Homem


Estranho Homem

Cunha e Silva Filho

         Aquele  homem  grande,  meio calvo,  corpulento e de cara amarrada  bateu  três   vezes na  porta  principal  com os dedos em punho. Do lado de dentro, eu achei esquisito  a chegada ali  daquela  pessoa. O homem foi logo   dizendo que  tudo estava errado.  Eu e minha  família, isto é,  minha esposa e meu  filho não entendemos  o porquê  do  transtorno  daquele  homenzarrão de cara feia que, sem  motivos,  vinha  nos  importunar  do nada. “Quem  é o senhor? O que  quer de nós? Não fizemos nada errado.A casa é minha, pago meus  impostos em dia e sou  um funcionário  público em final de carreira”.
      “Tudo quase aqui em sua casa está irregular, até a arrumação  da casa, a mesa  não deve   estar neste lugar aqui,  o sofá  é grande demais  pra casa,  a geladeira,  o fogão,  o tanque,  enfim, tudo  na casa  está  irregular.”
“Mas, por que me diz  tudo  isso,  senhor?’ “Não quero  saber de sua  resposta. O senhor, que se diz  dono da casa deve me acompanhar"
    Era noite.  Mas, o que  disse era da boca  pra fora,  pois, como se verá, no final   da conversa,  ia exigir que fosse na manhã seguinte prestar  declarações ao chefe  sobre  todas  as "ilicitudes"  que  conseguiu anotar  numa caderneta.  
  "Vejo,  inclusive,   que  sua cama   é grande demais,  não  tem  o tamanho  adequado  para  um casal  tão  pequeno e com  pouco  peso  se somados  os dois. O quintal  está, da  mesma  forma,   todo  fora da lei,  assim como  os bichos que cria. Eu vou  precisar de ter  documento  seu  comprovando  que o senhor  foi quem   comprou   os bichos: galinhas,   patos,   uma tartaruga,  um cachorro vira-lata e um gato  branco.E até os passarinhos nesta gaiola  não são permitidos   por lei.Vou ter que levar  bichos  e aves”.
    Esqueci de  informar que  o  brutamontes  estava acompanhado  de um   homem   pequeno,   de olhos  vesgos  e  trazia, debaixo do braço, uma pasta   marrom, dessa  pastas que  comumente  vemos  na  cidade  gente  carregando cheia de  papéis com ares de   burocrata  certinho  e bem organizadinho.
          “Se o senhor  não  arrumar sua casa conforme  as recomendações   legais,  será  daqui  expulso e até mesmo,   caso   reclame de alguma coisa, sairá preso, perderá  o emprego 'para o bem do serviço  público.’   E nem  pense  que  conseguirá algum  advogado  pra defendê-lo. De nada  adiantará, se for o caso de prisão,  será prisão mesmo” Habeas corpus para nós,  diz  o armário, é conversa  mole  de excesso de proteção  a criminoso”.
         “Mas, nada fiz  de errado,  levo  uma vida  correta,   não tenho vícios,   não tenho, ao que pareça,  inimigos,  e  só tenho  um hobby,  o  de  colecionar  velhos   livros  de matemática,  matéria  que  sempre  estudei, dela fui  aluno exemplar. Como são,  em geral,   livros   raros ou  de  décadas  atrás,  encomendo-os pelas livrarias virtuais. Eles chegam  sem problemas. Veja, ali naquela   estante,  quanto  deles   coleciono. Se disponho de mais tempo,   leio-os  e  resolvo  os problemas  propostos  por seus autores. Até os mais cabeludos.Alguns deles  têm a chave dos exercícios, destinada aos  professores, então designada “Parte do Mestre” (se não me engano,  introduzida  pelos  Maristas   da Coleção  primorosa,  a F.T.D.) para  que  confira  se  acertou  resolver  os problemas  ou  não.”
   “O senhor está me fazendo  perder  o tempo  com  conversa fiada. O meu  assunto  aqui  nesta casa é vir  cumprir  o que meu chefe  me  determinou e lembre-se  de que eles são  tão sensíveis  quanto   os robôs e os programas   de computador. São frios e calculistas e, ao  lidarem com  o ser humano,    pouco  ou  nenhum valor lhe dão. Portanto,  vá cuidando do que  tem  a declarar ao chefe  superior. Aqui está  o endereço  a que deve comparecer, leve  o máximo  possível de documentos e notas   fiscais  de compras  dos objetos   que  a sua casa possui. O grandalhão  entregou-me um  papel  timbrado e  me  pediu   que o assinasse. O comparecimento  ao chefe seria  no dia seguinte,  às 9 00:hs.
     O brutamontes, acompanhado do homúnculo, saíra  da casa sem  despedir-se. Ao contrário,  bateram  com a porta e sumiram  para um  lugar   desconhecido. Era noite.    Em casa, agora sozinhos,  não sabíamos   o que  dizer, tomados de medo  e desespero.  Descobri, de repente,  que  apenas mal  acordara  de um pesadelo e, agora, nem me recordo bem  se  os fatos se deram  conforme  o relato  precedente. Me acuda, leitor, que o mundo é louco mesmo  e sem sentido.

   Não  viu o que fizeram   com  aquele famoso  personagem de Kafka, preso  sem saber  por quê? E mesmo  a figura real  de  Graciliano Ramos,  o que de errado  fez  pra merecer  uma prisão no Estado Novo? Experiência  de preso injustiçado   que  lhe rendeu literariamente  uma grande  obra,  Memórias do  Cárcere. O pai  deste narrador também  foi preso em 1935, no mesmo  período  discricionário,     injustamente  somente  porque  tinha  em casa  uns livros marxistas que, de resto,  tinham  sido deixado na  casa dele  por um  seguidor  do comunismo,   o qual por acaso  estivera de passagem  por Amarante,  cidade  piauiense.Um dedo-duro  denunciara  meu  pai  que,  por isso,   amargara  um período de cadeia em Teresina. A experiência de prisão de meu pai o inspirou a escrever  um  dos  melhores capítulos  do  seu livro, Copa e cozinha.     

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