sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O SOLDADO “CANINANA” E A CUMBUCA DE OVOS

Foto meramente ilustrativa

O SOLDADO “CANINANA” E A CUMBUCA DE OVOS

Jacob Fortes

Numa localidade erma, encravada no vazio do sertão Euclidiano, existia uma vila conhecida originalmente por Água de Dentro, cujos habitantes, custodiados por uma miséria tão coletiva quanto próspera, eram pessoas simples que viviam da terra e dela tiravam o seu sustento. Décadas depois, Água de Dentro ascendeu à condição de cidade, desta feita sob a denominação de Riacho da Aurora.  Aliás, foi na capela do Riacho da Aurora que se verificou, segundo o folclorista “Leota”, o mais áspero exclamar de satisfação por parte de um caboclo que acabara de casar-se no religioso; casamento às pressas com dispensa dos proclamas. Ao ouvir o oficiante proclamar: “eu vos declaro marido e mulher”, e querendo reiterar à esposa o irresistível enlevo de tê-la desposado, exclamou o marido apaixonado, no mais genuíno estilo Romeu e Julita, às avessas:
— Zefinha, ou bom ou mau, a desgraça tá feita!

Agora que deixei escorrer sobre esta página essa invulgar declaração de amor, travestida de desmesura, retomo o curso da história.

Numa casinha rústica da região interiorana do Riacho da Aurora residia uma viúva, Dona Etelvina, e seu único filho, o Quincas, apelidado de Quinzin. Sempre acompanhada de Quinzin, Dona Etelvina, semanalmente madrugava em direção à feira do Riacho da Aurora para aprovisionar-se de açúcar, querosene e outros mantimentos próprios da despensa de que quem, pobríssimo, habitava os sertões distantes. Para custear essas aquisições levava uma cumbuca cheia de ovos de cocar, (entenda-se, por igual significado, guiné, galinha-d’angola, etc.). Certo dia, aos sete anos de idade, Quinzin presenciou, na feira, um alvoroço de grande intensidade demarcado por uma correria estrepitosa e um vozear de “pega-ladrão”. Era o polícia, Libório Sombra do Norte, o temido soldado “Caninana”, encalçando um carteirista que havia pilhado a bolsa de uma mulher, transeunte. A detenção do pilhante se deu defronte ao Quinzin e sua mãe, momento em que “Caninana”, que também era delegado, era a lei e era tudo, algemou o larápio, a pulso.     A cena fez imprimir na memória de Quinzin não exatamente o semblante do soldado “Caninana”, mas a cor do seu uniforme, cáqui: que avultava o temor da sua pessoa. Quando eventualmente alguém, trajando cáqui ou assemelhado, se aproximava da casa de Quinzin, ele mocozeava-se no íntimo da residência para não deixar-se ver.

O tempo passou e certo dia Dona Etelvina, enfermada, pediu a Quinzin, agora com doze anos, que fosse à feira em busca dos víveres levando, obviamente, a moeda de troca: a cumbuca de ovos. Quinzin retorquiu alegando que tinha medo de soldado, que tinha medo de ser preso. Dona Etelvina, então, para convencê-lo ao seu propósito lhe fez promessa de comprar algo e Quinzin acabou por aceitar a incumbência. Porém, sugeriu Quinzin, pegaria o caminho que perpassava o velho prédio da estação ferroviária, lugar de pouca movimentação. Sucede que em virtude de noticioso caso de furto de umas ovelhas “Caninana”, na madrugada daquele dia, acampanou-se justamente no prédio, em ruína, da estação ferroviária. Como o sol já resplandecia no cume das sete horas e, até então, nenhuma evidência do ladrão de ovelha, “Caninana”, tresnoitado, subitamente abandonou o esconderijo no justo momento em que Quinzin passava com a cumbuca de ovos. Ao defrontar-se com o soldado Quinzin, tomado de um medo que lhe fazia acelerar as batidas do coração, entregou a cumbuca ao “Caninana” dizendo:
— “Taqui que mamãe mandou pro sinhô”.

“Caninana”, abraçado à enorme cumbuca, que continha uma grosa de ovos, manteve-se estático e em silêncio sem saber o que fazer nem o que dizer. Enquanto isso Quinzin corria de volta para casa, prestes a regurgitar o coração, temeroso de que alguma necessidade expulsória do seu corpo aflorasse, sem o competente alvará de soltura ou carta de alforria, e viesse macular a sua modesta roupa de rapazola, “cabra-macho”.       

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