quinta-feira, 27 de março de 2014

JACK ESTUPRADOR E O GALINHO GARNISÉ

Jack, algumas galinhas e alguns descendentes do falecido galo garnisé





27 de março   Diário Incontínuo

JACK ESTUPRADOR E O GALINHO GARNISÉ

Elmar Carvalho

Dois meses atrás, quando estive na Várzea do Simão, reparei na beleza perfeita e miúda de um galo garnisé. Todo recoberto de penas escuras e vermelhas, mas em diferentes gradações e tonalidades; algumas chegavam a ser furta-cores. De crista altiva, bem recortada e de um vermelho muito vivo, quase como se fora uma joia, o galinho parecia imponente, mesmo sendo tão pequeno. Dizer-se que um garnisé é pequeno é quase uma redundância, mas se o digo é para lhe realçar a beleza minimalista, quase como se fora uma caprichosa escultura da ourivesaria de Botticelli. Consciente ou inconsciente do seu próprio ser, com certeza era desprovido de orgulho e vaidade.

Contudo, caminhava empinado, bem ereto e de peito estufado, como se nada temesse. Seu canto, embora agudo e um tanto curto, era um claro, metálico e vibrante toque de clarim. O Didi, que me havia dado algumas informações sobre o galinho garnisé, aduziu que ele me pertencia, uma vez que o Reginaldo, morador da Várzea, me dera de presente (embora disso eu ainda não tivesse conhecimento). Fiquei satisfeito com o mimo. Com efeito, o galinho era mesmo mimoso. Parecia uma pintura, um encanto, ou mais que isso: parecia uma obra de arte feita diretamente pelo artista Supremo, em que Ele tivesse desejado superar-se a si mesmo.



Vendo a beleza dessa ave, sem outra preocupação a não ser ciscar e catar grãos no terreiro, lembrei-me do que me contou um amigo, faz algumas décadas. Esse amigo recebera de presente de seu pai um galo garnisé. Criou-lhe grande afeição. O pequenino garnisé passou a ser o seu brinquedo favorito e o seu mais valioso tesouro.

Certo dia, porém, após comer um delicioso prato de galináceo a molho pardo, recebeu de seu pai a brutal notícia de que acabara de deglutir o seu galinho de estimação, em decorrência do aperto financeiro por que passava. O meu colega ficou chocado. Não sei se chegou a vomitar. Segundo ele me afirmou, nunca mais comeu galinha em sua vida, em razão do trauma que lhe ficara.

Recentemente, ao retornar à Várzea, perguntei ao Didi pelo meu galinho garnisé. Fiquei consternado ao receber a impactante notícia de que ele morrera. Fora “assassinado”, de forma covarde, por um galo que devia ter cinco vezes o seu tamanho. O matador, além de seu porte avantajado, devia pesar pelo menos seis vezes mais que o minúsculo garnisé.



O algoz, que naturalmente se sentia o rei do pedaço, senhor absoluto do poleiro e de todas as galinhas, tentou cobrir o pequenino garnisé. Acho que o tomara por uma franga. O garnisé, todavia, era bravo e repeliu o insolente assédio. Macho que era, rechaçou a inoportuna e impertinente investida do galo grandalhão.

O brutamontes não lhe perdoou a heroica recusa; furiosamente o matou com várias bicadas em sua formosa cabecinha, coroada com a magnífica crista escarlate de que já dei notícia. O Didi passou a chamá-lo de Jack Estuprador, e passou a alimentar um forte desejo de comê-lo a molho pardo, tendo como complemento um apetitoso pirão de parida. Todavia, o seu dono recusou a proposta, em virtude de que Jack é um competente reprodutor, e de não possuir ainda um outro galo capaz de substituí-lo à altura.



O epíteto Estuprador, convém salientar, não é de todo bem posto, uma vez que o intento restou frustrado. Isto porque o galinho não tinha a menor inclinação para ser galinha de quem quer que fosse, e muito menos daquele desabrido e aloprado galo. Ao contrário, tinha a sua companheira, uma galinha garnisé, imaculadamente branca. Deixou descendência, entre os quais alguns pintinhos e uma galinha e um galo, que ainda não tem a imponência e o canto vibrátil do seu falecido genitor.

O galinho garnisé era macho, destemido e heroico em sua pequenina e delicada formosura, e não aceitava insolências e deboches.    


4 comentários:

  1. Caro Elmar:

    Li, há pouco, seu texto, um dos melhores no gênero crônica que li de Você neste Blog.
    O que percebo, por um convívio já longo com o que produz em literatura até hoje, é que Você ostenta um estilo com inegável substrato clássico.
    Há alguma coisa que o torna, não uma anacrônica forma de escrever dos séculos passados, mas uma atenção cuidadosa de comunicar-se, como diria o crítico Álvaro Lins, renovando a linguagem, mas aproveitando o que de leituras em grandes autores brasileiros ou portugueses da tradição literária tenha de bom e perene assimilado.
    Daí seu texto me parecer peças sintática e estilisticamente bem elaboradas. Há uma medida de equilíbrio, de espontaneidade com o cuidado de realizar um texto que, a um tempo que se singulariza por uma forma pessoal de contar ou relatar histórias, personagens, animais (sempre os pondo na condição de humanidade, como tão bem fez o nosso Guimarães Rosa) e natureza, há no seu texto o prazer que desperta no leitor a curiosidade do que, no tempo da leitura da crônica, vai
    acontecer com os personagens, com o seu destino, com a sua sorte e com as ideias e as reflexões que certamente serão levantadas pelo leitor após a última linha do texto.Este não acaba no relato em si, porém no que provoca no leitor em termos de manifestação artística, formas de expressão e realidades testemunhadas mas tornadas possíveis ao serem passadas ao encantamento da escrita com objetivos de criação literária, função específica de quem produz literatura.

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  2. Caro Cunha e Silva Filho,
    Como sempre o seu comentário foi de muita pertinência.
    De fato, busco alcançar uma linguagem da forma como você analisou, contudo tento conseguir uma fluidez e uma possível espontaneidade, sem rebuscamentos e torcicolos estilísticos.
    Tento também, se e quando o texto o permite, alcançar uma certa dose de amor, ainda que à inglesa.
    Assim, posso dizer que você observou, com muita acuidade, os pontos que deveriam ser assinalados.
    Abraço,
    Elmar Carvalho

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  3. Insuperável, meu caro amigo Poeta! Tenho algumas crônicas sobre assunto relativo ao mundo das aves que publicarei no tempo devido. Entretanto, agora já estou quase revendo este intento, por conta da singeleza, da beleza, e do profundo sentimento - sem falar no modo jocoso com que foi conduzido - como o assunto foi tratado. Morreu o Garnizé, mas, e até por conta de ter defendido com ardor a sua honra de macho convicto, ficou imortalizado por esta belíssima crônica, tecida no limite tênue existente entre esta e o conto. Macho até o fim, o agora famoso Garnizé que saiu do seu humilde território interiorano para o conhecimento público. Conseguiu voar com suas insuficientes asas para dar conhecimento ao mundo inteiro sobre a sua existência de herói entre os bípedes emplumados.

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  4. O garnisé foi um presente que o Reginaldo, morador da Várzea do Simão, me deu. A morte inesperada e trágica do galinho, mas heroica, me deixou triste, principalmente pela covardia do Jack, um galo desproporcionalmente maior.

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