segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Festa no adro: rufos, fogo e chuva


Fonseca Neto

Teresina, 161 anos: no encerramento das celebrações organizadas pelo governo da municipalidade, enchemos o adro da igreja de São Benedito e vimos um espetáculo bonito. 
No papel central, as orquestras Sinfônica e Sanfônica da cidade, apresentando repertório esmerado, que variou do clássico-clássico ao popular-erudito, de Gonzagão a Dominguinhos. Avultando em tudo, a figura do maestro Aurélio Melo, mais um filho e uma arte da musical Oeiras, presenteados à novacap. E a tudo presidindo, de seu nicho externo, lá de cima, a figura de frei Benedito, o titular dessa igreja-templo oitocentista, que os negros e pobres de Teresina ergueram com muito suor e paixão. 
Movem uma forte simbólica esses grandes atos da vida coletiva local acontecendo nesse adro, espécie de chão marcado pela sagração derramada de porta fora da nave da própria igreja. Trata-se de um espaço perfeitamente moldado tal um grande palco da cidade – caracterizado por sua escadaria de ladrilhões – e propício a celebrações apoteóticas.    
Simbólica? Note-se a ironia: a igreja de São Benedito é uma obra idealizada e concluída entre os anos de 1861 e 1886, na então zona periférica  da nova capital do Piauí; templo  erguido sobre um sítio tumbeiro de desvalidos. Em que pese estar no perímetro “enxadrezado” de Saraiva e Isidoro – na assentada do Alto da Jurubeba –, não se conhece intenção manifesta nenhuma dos idealizadores da cidade de fazê-la nesse ou noutro lugar. E muito menos que se tornasse a especial referência cultural da cidade, que é, seja na dimensão material ou imaterial. O grande e calculado palco de Teresina e das celebrações religiosas e cívicas, em suas primeiras décadas, era o adro ou Largo do Amparo, da igreja matriz da Padroeira, aberto até a barranca do rio Parnaíba, hoje o Parque da Bandeira. 
Tinha, porém, esse sítio da Jurubeba, a vizinhança da “quinta” que tocara no rateio dos quarteirões originais a um prócer dos Castelo Branco, que, aliás, pusera-lhe a aristocrática denominação de Karnak. A construção da igreja impõe a reinvenção dessa zona da cidade, a qual estará integrada à chamada “mancha urbana” quando Teresina completou 50 anos, em 1902. Todavia, mais algumas décadas deveriam transcorrer, até que o adro da S. Benedito furtasse ao Largo do Amparo a dita simbólica de chão comum da vida coletiva celebrada. Foi decisiva para tanto a transferência da sede do poder estadual do antigo Largo para a citada Quinta de Karnak. 
Para o adro-escadaria e aos pés de São Benedito conflui o povo em notáveis jornadas caminheiras e celebrações da polis teresinense de hoje. Se já não há mais quermesse a animar a festa do padroeiro, mas é ali que as duas grandes procissões do ano se arrematam para os sermões do preceito: da Sexta-Feira da Paixão e da Quinta de Corpus Christi. É lugar de chegada e de partida de passeatas de protesto; comícios ali houve outrora – é ponto de partida da grande caminhada junina da fraternidade. Rufam tambores no 20 de novembro. Ante seu Cruzeiro cantam/encantam as mil vozes do coral do Natal de todo ano. Do adro para dentro da igreja, vê-se quase todo dia, pomposos cortejos nupciais pisarem tapetes vermelhos – e tiram fino no floral das portas esculpidas pelo gênio do mestre Sebastião, do qual ignoram a história.  
A festa desta sexta passada, 30, na batuta de mestre Aurélio, mobilizou toda essa carga de eventos reais e sensações memoriais da alma coletiva. As orquestras, e seus mais de cem instrumentistas e cantores, tiraram sons e tons para a aniversariante. Até Dominguinhos, já encantado, cantou Teresina, enquanto as estrelas rapidamente fugiam e os fogos artificiais iluminavam o campanário beneditino e a própria noite. E chuviscava: um barrufo agostino. Os sinos sentiram ciúmes de tanta trompa e tanto tímpano e não dobraram. Quê? Fogo e água para um novo batismo da amorável cidade? 
Sim. É de se dizer que os bombos e taróis nessa noite trouxeram ao terreiro das sagrações os rufos dos tambores da ancestralidade em pleno coração da urbe do presente.  

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