segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS



FAZENDEIRO DE URUBUS

Elmar Carvalho

Quando o sargento Gregório Silva chegou a sua casa, a mulher foi logo lhe dando a má notícia: o fornecimento de energia elétrica fora cortado. Portanto, ela teria que pedir à vizinha para guardar um resto de carne bovina e mais outras coisas perecíveis. Gregório era o delegado de Polícia de Chapadinha. Ficou possesso, e tratou de saber quem fora o empregado que efetuara o corte de energia. Remexeu em uns papéis, e imediatamente retornou à Delegacia. Mandou que um soldado lhe trouxesse o Zé Alicate, cujo nome verdadeiro era José Rosa Damasceno. O apelido lhe viera de seu execrável ofício de cortar fio de energia elétrica, para interromper o seu fornecimento. Na verdade, era empregado de um pequena empresa, que prestava esse serviço à Companhia de Energia Elétrica. A autoridade policial tinha fama de ter maus bofes e ser atrabiliário, mormente numa cidade como Chapadinha, que não era cabeça de Comarca, e portanto não era sede de juizado de Direito e nem de promotoria de Justiça. Viera transferido de outro município, e se comentava que já cometera alguns abusos de autoridade, por conta própria ou a pedido de outras pretensas autoridades.

Depois de esculhambar o Zé Alicate, perguntou porque ele lhe cortara a energia. O rapaz lhe respondeu que recebera uma lista das casas em que deveria ter sido suspenso o serviço, por falta de pagamento. O sargento Gregório, com voz estentórica, quase apoplético, bradou: “Pois fique sabendo, para tua desgraça, moleque atrevido, que ontem mesmo eu paguei o débito!” O empregado lhe disse que se a mulher do delegado lhe tivesse mostrado a fatura quitada não teria executado o serviço na casa da autoridade. Mas o sargento não aceitou a justificativa, ao lhe perguntar sobre por que motivo não viera primeiro falar com a sua pessoa. Disse que o empregado desejava lhe expor ao ridículo, para mostrar que tinha os “quibes” roxos, quando na verdade era um mequetrefe de merda. Sob escolta policial mandou que ele fosse efetuar a religação, e determinou que os policiais o trouxessem de volta. Assim foi feito. Disse que tinha umas diligências e averiguações a fazer, e mandou que os soldados trancafiassem o moleque atrevido numa das celas, na qual não havia cama nem rede. No dia seguinte, simulou um interrogatório, e por volta de onze horas mandou soltar José Rosa. É claro que o sargento não registrou nenhum procedimento, pois não era tolo para incriminar-se a si mesmo. Caso o episódio chegasse a seus superiores, teria como se defender, pois nada constaria oficialmente; diria que apenas o interrogara informalmente, mas que nada constatara do que lhe informaram anonimamente, ao telefone. Muitos, em Chapadinha, gostaram do abuso cometido pelo delegado, uma vez que achavam que o rapaz merecia uma lição. Zé Alicate era mal visto na cidade, porque parecia ter certa satisfação em cumprir a sua tarefa de cortar os fios das casas com exação extremada, se assim se pode expressar a prontidão com que seu alicate cumpria as ordens de corte que recebia. Nunca procurava saber se a dívida já havia sido paga. João Evilásio, considerado o intelectual da cidade, em sua psicologia de algibeira rasa, dizia que Damasceno era traumatizado por causa de uma grande surra que levou de seu pai, na infância. E contou o caso.

Quando José Rosa Damasceno tinha oito anos de idade era um menino levado. Inticava com os outros garotos. Gostava de brigar e perambular pelas ruas da cidade. Era dado a dizer nomes feios. Já sofrera suspensão na escola, e certa feita fora ameaçado de expulsão. O pai não lhe alisava a pele, e o castigava a valer, com um relho de couro cru ou com uma palmatória de pau rijo. Mas o garoto não se corrigia. Gostava de matar passarinho, com atiradeira, e de pescar. Numa dessas pescarias aprendeu a usar tingui e outras ervas que entorpeciam e matavam peixes. Numa de suas andanças, descobriu uma poça d' água onde os urubus bebiam. Lembrou-se das galinhas e dos capotes de sua mãe, que percorriam o quintal de sua casa. Às vezes, ele jogava milho para esses bichos, e gostava de ver a correria das galinhas e dos capotes em busca de um grão, e das disputas e alaridos que eles faziam. O menino pensou em ter o seu próprio rebanho. Achou que seria elogiado pelos pais. Envenenou o bebedouro na dosagem que julgou apropriada, e ficou numa moita de mufumbo a esperar. Aproveitou para admirar, como costumava fazer, não sem certa ponta de inveja, a revoada circular dos urubus, uma verdadeira e graciosa dança. Gostaria de ter asas, para voar e dançar no céu e nas nuvens. Mas isso era só para os anjos e certas aves, e não para um menino, filho de pais humanos.

Quando os urubus começaram a se desequilibrar, trôpegos, sem conseguirem alçar voo, Zé Rosa, com um rolo de cordão que levara numa bolsa, fez uma espécie de cabresto, e preou exatamente doze urubus. Gostava de ouvir seu pai dizer que tinha uma dúzia disso, uma dúzia daquilo. Achava um bom número, uma boa quantidade, nem muita, nem pouca. Foi pela estradinha, puxando as suas “reses”, de penas negras. Iria ter a sua fazenda de urubus, como os pais tinhas as suas galinhas, os seus capotes. Estava orgulhoso de si mesmo. Seus pais iriam sentir orgulho dele, o único fazendeiro de urubus. Era um bom e grande começo. Empreendeu uma longa e lenta caminhada. Os urubus, que já são gingosos naturalmente, bêbados, trôpegos, pareciam equilibrar-se em invisível corda bamba. Um ou outro caía, de quando em vez. Custava imenso esforço levantar-se. O garoto pensou no Antônio Bêbado, que sempre era visto a cambalear pelas ruas da cidade, ou caído nas sarjetas ou deitado nos bancos da praça. O sol já começava a procurar o seu poleiro, assim como as galinhas e os capotes de sua mãe. O céu já estava ficando vermelho, quando o menino avistou as primeiras casas da cidade.

O pai, furioso, a pedido da mulher, procurava Zé Rosa por todos os pontos de Chapadinha, que ele costumava frequentar, mas não tinha nenhuma informação. Já pensava em desistir, quando um ciclista lhe deu a notícia de que o garoto vinha puxando um rebanho de urubus, na estrada que ia para o Periquito. Manuel Rosa nem sequer agradeceu. Feito louco, montou na bicicleta, pedalou com força, e foi ao encontro do filho. O relho estava devidamente amarrado na garupa da bicicleta. De longe avistou o filho, a puxar o seu rebanho de urubus, as suas reses negras. Encostou a bicicleta numa árvore. O chicote desceu várias vezes sobre o lombo do menino, que estrebuchou e se esgoelou, sem que ninguém o ouvisse. Ninguém viu a surra, mas todos viram o seu corpo lanhado pelas chicotadas, que lhe feriram a alma mais do que o corpo. A mágoa calou fundo na criança. Esperara aplausos e recebera vaias, sonhara com elogios e lhe deram forte reprimenda e duras vergastadas. E o algoz fora o próprio pai. Talvez João Evilásio, poeta mor de Chapadinha, discípulo de Freud e outros que tais, tivesse razão em seu diagnóstico de leigo.

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