sábado, 30 de outubro de 2010

QUASE CAÇADOR (NOSTALGIA)

ALCIONE PESSOA LIMA


As pessoas que vivem em cidades grandes não experimentam algumas situações que são privilégios de quem mora na zona rural. São momentos que fazem parte da vida dessa gente desde o nascimento, como morar longe da escola, jogar bola em campo de várzea, participar de pescarias, caçadas etc.

Pois bem. Eu nasci na capital, mas vivi pelos tenros anos em localidades à época rurais dessa cidade e pude participar de algumas dessas delícias da vida simples de uma comunidade.
Morava longe da escola e tinha sempre que esperar toda a “corriola” para juntos irmos pela estrada de chão àquele lugar sagrado onde, mesmo iniciando já sabendo ler, escrever e todas as quatro operações aritméticas, consegui aprender, não só sobre matérias curriculares, mas lições de cidadania e humanidade.

E o tempo passou. E por muitas vezes entrei por buracos adrede feitos na cerca que protegia a pista do aeroporto para jogar bola. Travessuras que não esbarravam aí, pois após as peladas saia com os amigos, de baladeira em punho, à procura de passarinhos como a pomba-rola, casaca de couro, ou seja, só escapavam mesmo o urubu, o bem-te-vi e o anum porque sabíamos que se alimentavam de insetos ou animais necrosados.

E quantas vezes não descemos para as margens dos rios que banham esta cidade, não só para vê-los exuberantes em suas grandes enchentes, mas para pescarmos o piau, com isca feita de pirão de farinha de mandioca, folha de mamão e água quente, para pegar o visgo; e o mandi, com pequenas minhocas retiradas de lugares úmidos próximos às bananeiras plantadas em nossos quintais.

Era uma festa! Após a pescaria, caiamos n’água em um banho gostoso, mas eu, sempre medroso, pois não sabia nadar, razão por que lembrava-me sempre de uma frase de meus pais: “cuidado, pois água não tem cabelo”. Lógico, como toda criança/adolescente tive os meus momentos de desobediência e, por pouco, não fui tragado por aquelas águas.

Mas, mesmo vivendo todas essas aventuras, faltava-me participar de uma caçada, não daquelas de passarinhadas, com estilingue ou pedras na mão, após a queimada da vegetação rasteira do campo de aviação, como chamávamos, e, sim, com espingarda e munição para abater animais maiores, como um veado, cutia, paca etc. Isso, lógico, só vale para aquela época, quando não tínhamos a consciência ecológica de hoje e, sem sombra de dúvidas, a condição financeira que nos privilegia a termos na mesa a comida farta. Era, sim, um desejo de aventura, porém, não se pode olvidar que a principal causa era mesmo a sobrevivência.

E como o tempo não espera por nada, passou toda essa fase da vida e já entrando na fase adulta surge o convite que sempre esperei: participar de uma caçada.

Em uma bela manhã de março/99 nos reunimos, eu e mais dois amigos, um deles nascido pelas bandas de Joaquim Pires-PI, que foi o grande mentor e encorajador da aventura, e, após prepararmos as armas, ou seja, duas espingardas e um velho mosquetão, não sei de quem herdado, e os mantimentos, tanto para nos alimentarmos quanto para realizarmos escambo (troca de enlatados por uma suculenta galinha caipira) e pegamos um ônibus rumo ao destino. Sorte nossa que naquele tempo não havia fiscalização para coibir o transporte das armas.
Chegando próximo ao lugar que ficaríamos, melhor dizendo, a casa dos pais de um dos amigos, que conhecia muito bem a região, lá estava à nossa espera, após avisos pela Rádio Pioneira, um amigo com uma carroça puxada por uma velha burra, sega de um olho, que nos levaria até a casa onde nos arrancharíamos por dois dias. Era época de Semana Santa. Veja só, mesmo sendo um católico praticante e respeitador das normas da igreja e os costumes de todos que professam essa religião, não os obedeci e fui em busca da realização do sonho há tanto desejado.
Chegando no rancho prometido, lá estavam os pais e alguns irmãos do amigo condutor dos novéis caçadores que nos receberam com um largo sorriso e abraço. Nos sentimos também em casa.
Esperamos a noite, então, para começarmos a grande caçada em uma região de mata e alguns morros de onde se ouvia, até de dia mesmo, o barulho de macacos prego.
A noite caiu e, antes de sairmos, também veio uma forte chuva que fez adiar por algumas horas o plano traçado. E, ainda na espera do tempo melhorar, descobri um acervo valioso de livretos de cordel sobre uma mesinha na sala daquela casa de taipa e coberta de palha de babaçu. E lá estavam: “A morte de Lampião”, A serpente assassina”, “A grande traição” etc. Meus olhos brilharam e comecei a comentar sobre cada uma das obras, até lê-las recitando, a ponto de deixar levar-me por cada estória, pois havia uma platéia atenta e interessadíssima em me ouvir. Teatralizei as cenas e procurei ler cada texto com muito cuidado, sem perder o tempo da melodia, e, enquanto isso, a chuva lá fora não dava trégua. Ficamos de seis da tarde até mais ou menos a uma da manhã do dia seguinte. E ninguém arredava o pé. Mas eram muitos os livretos. Até que cansei. Também perdi a coragem de sair para a grande caçada, pois o tempo apenas tinha dado uma trégua. Esse foi o pensamento dos demais amigos, mas resolveram ir a uma festa em uma localidade próxima. Eu fiquei tentando dormir, mas um “caburé” teimoso resolveu cantar por toda a noite no alto de um velho e imponente pé de tamboril que existia no terreiro da casa.
E a noite, realmente, após o longo momento de êxtase na leitura dos livretos, não foi fácil, pois amanheci com alguns sintomas de catapora, meio febril e com algumas pequenas bolhas pelo corpo. Mesmo assim, tive a coragem de logo cedo dar o primeiro tiro com o velho mosquetão, pois foi o que me sobrou, e de uma forma surpreendente a todos consegui alvejar o chato da noite: o “caburé”. Daí, criei mais coragem e saí com os amigos por um vale próximo à casa. Nos separamos mais à frente até eles encontrarem um incauto veado. E eu, sozinho, apreciava mais a paisagem do que buscava os animais para abater. E o que mais me chamou a atenção foi quando deparei-me com um gavião que carregava uma cobra com as garras e assentado no galho de um árvore morta travava uma luta terrível com uma serpente. Ela, utilizando-se de suas armas enroscava-se nas patas da ave e esta, com a sua sagacidade rapineira tentava acertar a cabeça da peçonhenta como se fosse o golpe fatal que a levaria a nocaute. Bela cena que somente a natureza nos oferece! Ali estava um quadro de puro contraste entre a natureza morta (a árvore) e a viva (a lei da sobrevivência).

Naquele instante pus a arma ao chão, sentei-me em um tronco velho de palmeira, deitado ao chão, e passei a ser um mero espectador da natureza. Com sentimento de puro arrependimento, até por que lamentei muito ter mandado para a “terra dos pés juntos” o incauto “caburé”. Desisti de prosseguir a busca por qualquer outro ser vivo que servisse como troféu ao meu insano desejo há muitos anos alimentado.

Lamentei pelo destino da pobre coruja, que à noite poderia ter-se chamado de “caburé da lua” e, no momento de sua partida para a morada celeste, suponho, ter-se tornado o “caburé do sol”, pois o astro-rei já brilhava clareando a vida e iluminando a morte.

Assim posso dizer: um dia quase fui um caçador. Que bom que não consegui!

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