segunda-feira, 20 de setembro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


A ÚLTIMA CAÇADA

Elmar Carvalho

Chico Doca era o mais afamado e mais corajoso caçador da região. Caçava tanto de dia como de noite. Nas furnas da serra já matara até onça pintada. Uma delas andava comendo as miunças dos moradores da Varjota, e ele se propôs, como questão de honra, abater essa fera que estava causando tantos prejuízos na localidade, pois além de bodes e ovelhas, já matara até bezerros e garrotes. Muitas pessoas, intrigadas ou em tom de zombaria, lhe perguntavam que prazer ele poderia sentir em ficar trepado num pau, sozinho no escuro, sujeito a picadas de mosquitos e mordida de cascavel, à espera de quem não fizera trato com ele. A satisfação que sentia era indizível, misteriosa, um verdadeiro encantamento. O caçador não sabia expressar o seu sentimento em palavras.

A expectativa da espera, o silêncio da floresta, quebrado por uma leve brisa ou por passos de animais ariscos ou ainda pelo esturro longínquo de uma onça, escondida nos socavões da serra, tudo isso mexia com o seu imaginário, com os seus fantasmas, com as superstições que trazia dos longes da infância, e lhe parecia testar a coragem. Sozinho, a contemplar as estrelas, que pareciam brilhar mais intensamente, sentia mais forte a presença de Deus. Era como se entrasse em comunhão com a natureza, com os bichos e com a floresta. Preferia caçar sozinho, como se estivesse a comprovar os limites de sua coragem, paciência e ansiedades, mas, algumas vezes, caçara em companhia do Dr. Nestor, um homem sabido da cidade, que se considerava exímio caçador. Notava que de caçador mesmo ele só tinha as fobas e as pabulagens, em que exagerava os episódios remotamente verdadeiros. Era um homem falante, instruído, cheio de luxo. Quando vinha com os seus amigos, trazia grande matalotagem, muitos mantimentos esquisitos da cidade, além de muita bebida refinada, como vodca e uísque. Trazia também dois ou três livros, que lia, comentando alguns trechos. Esse doutor um dia lhe lera o poema Juca Mulato. Gostara muito da parte em que o caboclo, flechado pela paixão impossível pela filha da patroa, descobrira que tudo amava, as coisas, as plantas e os animais.

Chico Doca não matava só por matar. Matava apenas o que comia, e apenas na medida de sua necessidade. Os moradores não aprovavam o fato de ele comer macaco. Aconselhavam-no a não abater esse animal, que seria primo do homem. Indagou a respeito a seu amigo estudado, de anelão de pedra azul no dedo. Nestor Gaioso lhe contou que o homem e o macaco efetivamente descendiam de um mesmo tronco. Não acreditou nessa conversa, e até achou que ele, por ser um homem culto, estivesse zombando de suas poucas luzes de completo analfabeto, embora não fosse tolo, e até fosse considerado um grande conversador e contador de estórias de Trancoso, como diziam no mato em que morava. Naquele ocasião, resolveu caçar de dia. Com sua habilidade, experiência e faro, logo descobriu um bando de macacos. Apontou a arma sem muita determinação em atirar. Aquela conversa de que era parente desses animais estava mexendo com os seus sentimentos. Começou a notar algumas semelhanças entre eles e os humanos. Passou a reparar na inteligência e na esperteza deles. Tinham algumas habilidades que os outros bichos não tinham. Contudo, era um caçador afamado, e nunca voltara para casa com as mãos abanando.

Notou que um dos macacos se atrasara, como se estivesse procurando alguma coisa. Descobriu que era uma fêmea à procura do filhote. Firmou a espingarda. Daquela distância nunca errara um tiro. Quando se preparava para apertar o gatilho, viu que a macaca lhe mostrava o filhote, que sustinha nas mãos, emitindo uns grunhidos, como se fosse uma súplica. O caçador, com o dedo no gatilho, refletiu que ela poderia ter fugido com os outros, abandonando o maquinho à própria sorte; que poderia ter se ocultado atrás do grosso tronco da árvore próxima. Concluiu que ela não estava se escondendo atrás do filhote, mas implorando, não por si, mas por ele, para não deixá-lo no desamparo da orfandade, em tão tenra idade. Chico Doca lembrou-se das palavras do Juca Mulato, que decorara: “Tudo ama! / As estrelas no azul, os insetos na lama, / a luz, a treva, o céu, a terra, tudo, / num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo, / tudo ama! tudo ama!” Naquele dia não puxou o gatilho. Calmamente baixou o cano da arma e voltou para casa, pensativo. A mulher e os filhos se admiraram do embornal vazio e do silêncio ensimesmado do caçador. Com os versos ressoando na alma e nos ouvidos, não mais o puxaria. Sequer guardou a espingarda, como lembrança.

Um comentário:

  1. Prezado poeta,
    É impressionante como certas estórias paridas pela nossa imaginação possam retratar, pelo menos em parte, uma história verídica muitas vezes de quem sequer já ouvimos falar.
    Fiquei deveras espantado ao ler A ÚLTIMA CAÇADA. Meu pai já havia me contado uma estória similar em que ele era o protagonista. Há muitos anos, meu progenitor tinha como hobby a caçada. Na qualidade de ex-militar, tinha uma pontaria certeira, que lhe proporcionava a mesma fama de Chico Doca. Depois de muitas expriências de caça, a que encerrou o seu hobby foi ver uma gariba exibir o filhote como se estivesse apelando para a sensibilidade humana depois de ser alvejada por meu pai. Aquele fato foi decisivo para aquele exímio caçador. Nunca mais se ouviu falar de uma caçada em que meu pai tivesse participado.

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