sábado, 27 de março de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS

O LOBISOMEM DA APERTADA HORA

Elmar Carvalho

Há algum tempo corriam boatos, na localidade Canafístula, de que na proximidade da passagem da Apertada Hora aparecia um lobisomem. Diziam que algumas pessoas já o teriam visto. As pessoas acreditavam que a besta surgia em noites de lua-cheia; que era algum compadre amancebado com comadre. Eu achava que isso era uma injustiça contra os homens: se o compadre virava bicho, por que a comadre também não virava, e se transformava numa loba-mulher? Ou mesmo numa mula-sem-cabeça? O certo é que o pecado, se é que tal fato era pecado, não poderia ter dois pesos e duas medidas, com o homem sendo punido com a maldição da licantropia e a mulher sendo poupada. Ambos eram culpados. Se um não aceitasse o acasalamento ou fornicação, como diz a Bíblia, o outro também não poderia pecar. Mas os encantamentos são mesmo misteriosos, e se não fossem misteriosos não seriam encantamentos. Os boatos sobre o lobisomem da Apertada Hora iam crescendo e tomando proporções assustadoras, e já poucas pessoas passavam à noite pelo indigitado lugar. Essa passagem, cheia de mistérios, lendas e assombrações, ficava mais ou menos na metade do caminho entre os povoados Canafístula e Boqueirão. Com os moradores de Boqueirão não havia problema, pois moravam a cerca de 15 quilômetros da sede do município, onde ficava o posto de saúde mais próximo, e onde morava o único médico da região; lá também ficava o único estabelecimento que merecia, embora com ressalva, o nome de farmácia. Mas com Canafístula a situação era muito mais difícil, pois esta ficava a 18 quilômetros de Boqueirão, de onde a estradinha seguia para a sede municipal. Seria quase impossível não se passar pela passagem da Apertada Hora, pois o desvio seria pela mata fechada, sem caminho, subindo as encostas íngremes da serra, contornando obstáculos que encompridariam consideravelmente a distância entre os dois povoados. A coisa chegou a tal ponto, que ninguém de Canafístula foi ao festejo de Santo Antônio, em Boqueirão, que era muito animado, com novenas, quermesses, leilões, bancas de jogos e festas dançantes. Mas era diversão, dava para se passar sem diversão. Era o que se dizia, como um triste consolo.

Chico Doca era um caboclo calado, desconfiado, arisco, e considerado homem de coragem e decidido. Quando perguntado sobre se acreditava nas estórias sobre o lobisomem, limitava-se a dar de ombros, e resmungava que não acreditava nem desacreditava; que o mundo era composto, e nele havia de tudo. Acrescentou, num rasgo verborrágico, inusitado em se tratando de sua pessoa, que não gostava de gastar sua coragem à toa, mas que se houvesse necessidade enfrentaria o problema, ainda que fosse numa noite de lua-cheia. Era solteiro, filho único e órfão de pai. Morava sozinho com a sua velha mãe. Uma tarde, por volta das cinco horas, a anciã sentiu uma coisa ruim, com febre e fortes dores de cabeça. Chegou a gritava de dor. Chico Doca não contou conversa. Imediatamente selou seu cavalo e seguiu para a cidade, à procura do médico e de medicamentos para sua mãe. Sequer por um momento, pensou no lobisomem. Ainda que tivesse pensado, iria do mesmo jeito.

Quando retornava, alta noite, já na saída de Boqueirão, e ao ver a lua-cheia brilhando no céu, foi que se lembrou do lobisomem e da passagem da Apertada Hora, que era uma garganta estreita entre dois desfiladeiros abruptos. Destemido, seguiu adiante, em marcha firme, levando os remédios aviados pelo médico e comprados na farmácia da cidade. Era um homem prevenido, e por isso, para se defender de algum ladrão ou de alguma onça ou outra fera, levara um facão e um forte bordão de jucá, que derrubaria qualquer novilho, com uma pancada no cabelouro. Quando se aproximava da temida passagem, viu um vulto escuro. Pareceu-lhe que o cavalo refreava os passos, até empacar de vez, como se estivesse cismado de alguma coisa, deste mundo ou do outro. Pensou que se voltasse a sua missão não estaria cumprida, e sua mãe poderia morrer por falta de socorro. Por outro lado, teria que dizer que vira o lobisomem, quando não tinha nenhuma certeza sobre o que realmente via, diante da pouca claridade da lua, escondida entre nuvens, e porque a fera estava quase oculta entre as folhas. Fosse por causa do refugo do animal ou porque preferisse enfrentar a marmota em terra firme, para melhor desferir o golpe com o facão ou com o porrete, marchou a pé em direção ao local onde estava o bicho, de tocaia, meio encoberto por uma pequena moita de mufumbo. Ante o inelutável, marchou rápido, empunhando o cacete na mão esquerda e levando o facão na destra. Esperando o salto da fera a qualquer momento, caminhou para a luta, para a vida ou para a morte. Ao se aproximar, resolveu passar o jucá para a mão direita e o facão para a canhota, e desfechou um violento golpe na besta, que saiu em louca disparada, a escoicear o vento e a rinchar desesperado. O temido lobisomem era apenas um pacato jumento. Foi a última vez que se ouviu falar do lobisomem da passagem da Apertada Hora.

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